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A Metamorfose (Franz Kafka) não é uma simples ficção

Em A Metamorfose, um angustiante retrato da condição humana na sociedade moderna, podemos observar como Gregor Samsa tem sua desumanidade representada através do ato da metamorfose. Lançada em 1915 por Franz Kafka, a novela utiliza uma linguagem objetiva, descritiva e imparcial para denunciar como esse absurdo é aceito com naturalidade por sua família e por ele mesmo.

No capítulo inicial do livro, já podemos observar que Gregor não estranha sua súbita transformação em um inseto, como se ele mesmo já não se enxergasse mais como um ser humano. Isso ocorre porque ele havia deixado sua vida pessoal de lado em prol de um trabalho que ele odiava executar apenas para agradar aos pais.

a metamorfose - Franz Kafka

A representação de uma desumanidade

Essa metamorfose não é nada além da representação de uma desumanidade previamente existente, causada por esse sacrifício. Na página nove, temos um trecho que exemplifica bem isso: “Era uma criatura do chefe, sem espinha dorsal nem discernimento…”. Ora, qual criatura conhecemos que não possui espinha dorsal e nem discernimento?

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A metamorfose, então, seria algo inevitável; Gregor fisicamente se tornou aquilo que ele já era interiormente. Toda a passividade, na qual, ele e a família lidam com a situação é utilizada para normalizar o acontecimento. Essa normalização na escrita é uma denúncia da situação, afinal, o discurso de que trabalho e dinheiro são as coisas mais importantes na vida é intrínseco à nossa sociedade e idealizado por muitos.

Gregor também era objetificado como única solução para os problemas financeiros da família, responsabilidade que ele abraçou com todas as suas forças visando sua necessidade de inclusão, de aceitação dos pais. Quando seu chefe o repreende, podemos notar dois pontos interessantes no discurso de defesa do Gregor, na página 25/26:

“Tenho por outro lado de cuidar dos meus pais e da minha irmã. Estou num aperto, mas sairei dele trabalhando. Não me torne, porém as coisas mais difíceis do que já são. Tome o meu partido na firma! Que o caixeiro viajando não é querido eu sei (…) uma vez que na maioria das vezes ele não fica sabendo delas e só o faz quando, exausto, termina uma viagem e já em casa sente na própria carne as consequências nefastas cujas origens não podem mais ser descobertas.”

O trabalho

O primeiro ponto é quando ele afirma que o desgostos dos colegas da firma e o cansaço da viagem traz consequências nefastas na própria carne; um trecho que materializa perfeitamente a ideia da metamorfose ser resultado da sua infelicidade com o emprego.

O outro ponto é a ideia da responsabilidade que ele tomou como unicamente dele quando na verdade era um problema geral da família. Afinal, o pai dele também estava em condições de trabalhar ­ pois assim o faz sem maiores complicações no capítulo seguinte.

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Na página inicial podemos observar também uma necessidade de amor maternal através de uma descrição espacial:

“… pendia a imagem que ele havia recortado fazia pouco tempo de uma revista ilustrada e colocado numa bela moldura dourada. Representava uma dama de chapéu de pele e boa pele que, sentada em posição ereta, erguia ao encontro do espectador um pesado regalo também de pele, no qual desaparecia todo o seu antebraço.”

Mais tarde, nas páginas 16 e 17, a mãe completa a ideia que ele possui uma mentalidade voltada unicamente pro trabalho e dá informações sobre o signo da moldura através deste trecho:

“Esse moço não tem outra coisa na cabeça a não ser a firma. (…) É uma distração para ele ocupar-­se de trabalhos de carpintaria. Por exemplo, durante duas ou três noites entalhou uma pequena moldura: o senhor vai ficar admirado de ver como ela é bonita; está pendurada lá dentro do quarto; o senhor vai enxerga-­la assim que ele abrir”.

A construção de uma moldura

É interessante notar como Gregor gastara seu único tempo longe do trabalho se dando ao esforço de construir uma moldura apenas para poder manter a imagem de uma dama estendendo um casaco pra o espectador à vista no seu quarto. Juntasse isso, a sua necessidade eterna de aprovação dos pais, e não seria difícil concluir que essa imagem representa o quanto ele deseja o amor materno.

Ainda no capítulo de abertura, há outros trechos interessantes a serem analisados que exemplificam a necessidade de inclusão. Na passagem da página 22 para a 23, enquanto Gregor com muita dificuldade tenta abrir a porta, temos a seguinte frase:

“Para Gregor isso foi um grande estímulo; mas todos deveriam encoraja-­lo, inclusive o pai e a mãe.
­ Ai, Gregor! ­ deveriam clamar. ­ Sempre em frente, firme na fechadura!”

Um grito de socorro

É fácil notar que Gregor já não se sente mais estimulado a não ser que os pais aprovem e o incentivem ­ isso porque sua individualidade já fora sacrificada. Gregor era uma criatura enjaulada. Nada do que ele fizera em sua vida fora por ele mesmo. Observemos também o trecho retirado da página 19:

“Ainda ontem à noite estava tudo bem comigo, meus pais sabem disso, ou melhor: já ontem à noite eu tive um pequeno prenúncio. Eles deviam ter notado isso em mim.”

Esse pequeno prenúncio que seus pais deveriam ter notado nele é um pequeno grito de socorro, no qual demonstra que ele, na verdade, gostaria que seus pais tivessem notado todo sofrimento que ele andara passando.

Mas seus pais não notam. Seu filho para era apenas um objeto, uma fonte de renda, nada humano. Durante o resto do livro, eles apenas repudiam a atual forma dele; em momento algum comentam que sentem falta de como ele era antes ou se mostram tristes por terem o perdido. Objeto que, ao longo da trama, é substituído pela irmã.

A inocência e a esperança

No início podemos ver a irmã como um símbolo de inocência e esperança, ela é uma pessoa que ainda não entrou na engrenagem capitalista. Logo, é a única que ainda vê Gregor como seu irmão e a única que ainda o aceita mesmo em seu estado mais repugnante.

No entanto, conforme ela começa a trabalhar ­ e integrar essa engrenagem ­ aos poucos ela vai perdendo a crença no fantasioso até culminar no clímax no qual ela afirma que o inseto não era seu irmão. Ponto decisivo, pois foi ali que ela substituíra definitivamente Gregor como objeto ­ afinal, foi onde ela rompeu completamente com a personagem inocente que era no início da obra.

Não é difícil de imaginar a inspiração de Kafka para tal obra. O autor cresceu com um pai rígido que nunca o aceitava completamente e que queria obrigá­-lo a seguir uma carreira que ele não desejava para si. Podemos obter mais detalhes da relação conturbada entre os dois no angustiante relato pessoal de Kafka, Carta ao pai.

Portanto, A Metamorfose não é uma simples ficção, é uma síntese da experiência e visão de Kafka sobre o mundo. Através de Gregor, somos expostos às consequências devastadoras de um homem que pôs sua individualidade de lado priorizando a integração completa a sociedade.

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Uma resposta

  1. Renan, seja muito bem-vindo ao Livro&Café! Você começou muito bem, porque Franz Kafka foi um escritor tão genial! Gosto muito da popularidade dele, principalmente o livro A Metamorfose, que traz para o leitor tantas possibilidades. Impossível não gostar. 🙂
    Bjos!!!

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