Cem Anos de solidão possui técnica, estilo, emoção e uma história de pessoas comuns com grandes porções de coisas impossíveis, mas que se tornam imediatamente possíveis quando o leitor pensa nas histórias de sua própria família.
Antes de começar a leitura de Cem Anos de Solidão eu tentava imaginar como seria a história, a partir da certeza que cem anos de solidão é muito tempo. Imaginei algo com um personagem que vivia uma vida solitária em algum lugar, uma ilha deserta, uma floresta, algo assim. Mas para a minha enorme surpresa, o que eu encontrei no livro não tem absolutamente nada sobre esse tipo de solidão representada por uma pessoa isolada do mundo, mas, por outro lado, a força da solidão existencial e de sobrevivência de cada personagem é tão intensa que, ao concluir a leitura, isso acompanha o leitor por muito tempo. Arrisco a dizer que para sempre, pois, após uma longa estadia no realismo mágico de Gabriel García Márquez, posso afirmar que a sua obra é uma das grandes belezas da literatura mundial.
O livro possui uma linguagem fácil, mas também consegue atingir um leitor mais exigente. Ao ler Gabriel García Márquez, um leitor de primeira viagem terminará muito satisfeito, porque a história que ele conta é realmente muito linda. Para outros tipos de leitores, além da história e todos os elementos que a compõe (personagens, espaço, narrativa, enredo, tempo, etc), a qualidade técnica do texto deixa qualquer um impressionado. Aquela velha premissa que o menos é mais se faz presente, porém, alcançar um estilo único, uma linguagem própria e manter a qualidade e a beleza do começo ao fim não é para qualquer um. E, para completar o conjunto da obra, temos o realismo mágico que, sem dúvidas, Gabo dominou.
Por Cem Anos de Solidão é um clássico?
Cem Anos de solidão, então, é um clássico da literatura por inúmeros motivos. Temos técnica, estilo, emoção, uma história de pessoas comuns com grandes porções de coisas impossíveis, mas que se tornam imediatamente possíveis quando o leitor pensa nas histórias de sua própria família. Qual latino-americano nunca ouviu alguma conversa sobre os antepassados que envolvia mistérios e acontecimentos inexplicáveis, como uma chuva que dura mais de anos, borboletas que voam em cima da cabeça, uma mulher que come areia, um homem que escapa de um pelotão de fuzilamento? É isso e muito mais o que encontramos na obra prima de Gabriel García Márquez.
A história começa com uma frase muito forte, que permeia muitos momentos da história, pois envolve um dos grandes personagens da obra, o coronel Aureliano Boendía:
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.” (p. 43)
Na sequência, o leitor é arrastados para o universo da família Boendía, por sete gerações, que vivem em Macondo, uma cidade fictícia, numa casa que também tem vida, como se fosse mais uma personagem, assim como a cidade e os tantos mistérios que acontecem ao longo da história.
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José Arcádio casa-se com Úrsula. Eles caminham por muito tempo em busca do mar, como não encontram, acabam construindo uma pequena vila no meio do nada, que depois se torna a cidade Macondo. Úrsula tem dois filhos, José Arcádio e Aureliano José. Cada qual, com características diferentes, mas acabam possuindo algumas características do pai, um homem sonhador, amigo do cigano Melquíades, que colabora para alimentar os seus sonhos, entre eles, o domínio da alquimia. Os filhos de Úrsula também se casam, também fazem filhos. Os filhos dos filhos fazem mais filhos, que fazem mais filhos. Todos se chamam Arcádio ou Aureliano e, geração a geração, a história da família é contada de um jeito muito particular, único, não-linear, como se o presente e o passado se misturassem a todo tempo.
Úrsula é uma das poucas personagens que se fazem presente em quase toda a obra. Ela se torna a grande matriarca da família e, acredito, a que mais vive os tais “cem anos de solidão”.
Coronel Aureliano, filho de Úrsula também é um dos grandes personagens. Ele luta em trinta e duas guerras, perde todas, mas permeia sobre ele, sabiamente, o velho conhecimento popular que afirma que o mais importante é a luta e não a vitória. Porém, isso quem entende é o leitor, pois, como uma característica de todos os personagens, a vida que eles levam é muito mais por conta de seus instintos.
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A confusão dos nomes
É comum, uma certa confusão por conta de tantos nomes repetidos, porém, no desenrolar da história, o leitor estará em um mergulho tão profundo que o foco será nas ações dos personagens, a mudança da vila, das pessoas, da casa e, principalmente, o estado de solidão de cada um; é assim que se torna possível distinguir os Boendía, homens e mulheres. Alguns gostam de ficar no quarto, outros vão para a guerra, alguns cuidam da casa, outros possuem uma beleza tão forte que chega a matar, há aqueles que sofrem por falta de amor, outros buscam amor em outras casas, alguns viajam, mas todos retornam para a casa e ali terminam as suas vidas.
Interessante como Gabo trabalha com o elemento da morte. Em Cem Anos de Solidão saber da morte de uma personagem não é um incômodo, pois em vários momentos é a primeira informação que recebemos, para depois voltar ao passado e ao presente, que se mistura à vida de outras personagens e diversos acontecimentos inverossímeis, porém possíveis por conta do realismo mágico.
As mulheres é um outro ponto forte na obra. Todas elas possuem uma história muito particular. Mulheres fortes, loucas, belas, putas, cartomantes, tem de tudo. Úrsula, a principal, sem dúvida, por conta dos obstáculos tão difíceis que enfrenta sozinha, é como se representasse todas as mulheres, assim como o seu marido representa todos os homens. A luta por sobrevivência e uma vida alimentada pelo próprio impulso de viver, faz de Cem Anos de Solidão uma história linda e forte sobre o latino-americano, com direito a revoluções, golpes, mortes, crimes, a vida, costumes antigos, superstições e solidão como um estado de espírito, eterno.