A Viagem é o primeiro romance de Virginia Woolf, foi publicado em 1915 e levou nove anos para ser concluído. Esse longo tempo para concluir a obra é explicado por várias situações difíceis que ocorreram na vida da autora, como a perda da mãe, do pai, da meia-irmã e do irmão. Junto dessas perdas irreparáveis, Virginia Woolf passou também por períodos de profunda depressão e tentativas de suicídio, que culminou, assim que o livro foi publicado, no internamento em um hospital psiquiátrico.
“Quando se tornou doloroso continuar olhando, a grande vastidão da paisagem parecendo aumentar os olhos dela além do limite natural, ela fitou o chão; gostava de perscrutar cada polegada do solo da América do Sul” (A Viagem, p. 216)
Em algum lugar do Brasil ou redondezas…
O romance se passa em algum lugar do Brasil. No livro não há menção ao país, mas dá uma pequena ideia da localização da história, quando um navio parte de Londres para a América do Sul. Assim, pelas poucas referências geográficas na obra e com as informações do prefácio, escrita por Antonio Bivar, conseguimos imaginar que o romance se passa em algum lugar no Maranhão (aliás, não leia o prefácio antes de ler a história pois contém spoiler).
“Ouviram falar do Euphrosyne, mas também ouviram dizer que era basicamente um navio de carga, e só aceitava passageiros por arranjo especial, uma vez que seu negócio era levar mercadorias para o Amazonas e trazer borracha de volta…”
Um navio, a praia, a floresta
Euphrosyne é o navio de Willoughby Vinrance, um empresário inglês muito querido pela sociedade inglesa. Rachel Vinrance é a sua filha, uma jovem garota que pela primeira vez sai de sua casa para uma grande viagem e também para viver em sociedade – conversas, novas amizades, passeios por praias e trilhas, jantares, todo um mundo novo se abre para ela a bordo do navio e depois em terras brasileiras. Solitária, ela tem em sua tia Helen Ambrose, a figura de uma mãe, já que a sua morreu há muito tempo.
Rachel Vinrace gosta de música, tocar piano é uma de suas grandes paixões, além dos livros. Com as novas amizades que encontra no navio, descobre outro autores. Então, o leitor pode imaginar uma mulher a bordo de um navio no Oceano Atlântico em um dia ensolarado, lendo um bom livro. Adicione a isso o norte do Brasil, com belezas naturais e exóticas para quem vem do outro lado do atlântico.
A Viagem possui características de um romance clássico, por outro lado, é possível verificar também as nuances do Modernismo de Virginia Woolf, que aparecem com mais força em suas outras obras. Sabemos que os seus primeiros romances precisavam passar pelo agrado dos editores, portanto, ela ainda tinha a preocupação de escrever algo mais comum à literatura da época, que fosse “publicável”.
Toda a sua força literária então, está nas entrelinhas e na maneira diferente que ela conduz os diálogos e as ações dos personagens, pois, se o leitor espera uma heroína em busca de um casamento, Rachel tem algo muito maior, que é encontrar um sentido para a vida e tomar decisões próprias.
A presença de Mrs. Dalloway
Um longo romance, são mais de quinhentas páginas, precisa ter capítulos que o sustentem e isso Virginia Woolf dominava desde sempre. No início do livro, os melhores capítulos possuem a presença de Clarissa e Richard Dalloway, personagens que deram vida à obra Mrs. Dalloway, um das mais importantes da autora. Em A Viagem, o casal pega uma “carona” no navio e conhece Rachel Vinrace, que fica admirada com o casal, mas também confusa.
Tanto Clarissa, de um jeito mais positivo, quanto Richard, de um jeito grosseiro e machista, dão uma nova fase à vida, até então, prática da garota. De repente, ela se vê pensando na vida com um olhar mais profundo, crítico, desconfiado e até mesmo maduro. Mais para frente, com o personagem Terence Hewett, vamos ter também grandes capítulos, de arrancar aplausos de um leitor apaixonado pelo estilo woolfiano.
Meio adormecidos e murmurando palavras fragmentadas, pararam no ângulo feito pela proa do barco, que deslizava rio abaixo. Um sino tocou na ponte de comando e ouviram o chapinhar da água que se afastava em ondinhas dos dois lados; um pássaro assustado no sono grasnou, voou para a árvore mais próxima, e tudo ficou calado de novo. A escuridão derramava-se profusamente e os deixava quase sem sentimento de vida, a não ser por estarem parados ali, juntos, na escuridão. (p. 429)
A Viagem, um romance de presságios
Há dois momentos na história que se conectam diretamente à vida de Virginia Woolf, principalmente com a sua morte trágica: ela cometeu suicídio afogando-se no Rio Ouse. Na carta que ela deixou ao marido Leonard Woolf, escreveu “não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.“. No romance A Viagem, como um presságio, uma personagem diz a outra:
“— Nunca houve duas pessoas tão felizes como nós fomos. Ninguém amou como nós amamos.” (p. 518)
Em outro momento, durante um longo período de febre de uma personagem, há um delírio que relaciona o jeito como Virginia Woolf se matou, afogando-se nas águas:
“… ela caiu num profundo poço de água viscosa, que depois fechou-se sobre sua cabeça. Nada via ou ouvia senão um tênue som pulsante, que era o som do mar rolando sobre sua cabeça. Seus atormentadores a juglavam morta, mas não estava morta, e sim enroscada no fundo do mar. Lá jazia, às vezes vendo a escuridão, às vezes luz, e de vez em quando alguém a virava para o outro lado no fundo do mar” (p. 501)
Para compreender a dimensão desse momento tão triste, temos o filme As Horas com uma cena de Virginia Woolf, interpreta por Nicole Kidman, afogando-se no rio:
As Ondas…
Outra relação que podemos fazer é com o livro As Ondas, que termina com a frase “As ondas quebraram na praia.”, muito parecido com o que encontramos no início do Capítulo 25:
“A tarde estava muito quente, tão quente que as ondas quebrando na praia soavam como o repetido suspiro de alguma criatura exausta” (p. 480)
Sabemos que esses pequenos trechos apenas se conectam a outros momentos da vida e da obra da autora de uma forma quase natural. Se pesquisarmos outros autores, também poderemos encontrar essa sintonia entre obra e vida.
Quando, além do livro, o leitor procura ler também a vida do autor, os detalhes podem saltar aos olhos e deixam a leitura mais especial, com uma dimensão muito maior, carinhosa e também humana. Mas reconhecemos, com as tantas teorias literárias, que é muito perigoso fazer essas conexões entre o autor e o narrador, eles são ao mesmo tempo iguais e tão diferentes, pois em um está uma pessoa comum, viva, carne e osso, em outro está aquele que dá voz ao livro.
A depressão…
É doloroso, portanto, imaginarmos qual era o estado mental de Virginia Woolf quando escreveu as suas cartas de suicídio, uma para Leonard, outra para Vanessa, sua irmã,o que torna difícil apurar se ela recordou em seu último dia de vida do primeiro romance que escreveu ou se foi algo do subconsciente.
Independente da resposta, impossível de ser alcançada, com essas informações, o leitor saberá do que se trata um romance woolfiano e pode, inclusive entender que o primeiro livro de Virginia Woolf, além de relacionar diversos aspectos das relações sociais e amorosas; além de criar momentos explendorosos com personagens ricos mostrando toda a felicidade e grandesa da vida e da natureza; relaciona também a vida e a morte, como dois opostos tão confusos, mas também vibrantes.
“Então houve um silêncio profundo, como se o trovão tivesse se recolhido sobre si mesmo.” (p. 539)