Escrito em 1952, Queer (Companhia das Letras, 2017) foi lançado apenas em 1985. A temática homossexual, embora presente em outras de suas obras e em diversos títulos que quebraram barreiras desde o início da “beat”, encontrou dificuldades maiores com relação a censura. Por contar uma história de amor ou obsessão de Burroughs por um rapaz, ou talvez simplesmente por carregar em sua capa um termo provocativo, que pode ser traduzido para o português em algo como “bicha”, mas que assim como em “Junky” (que pode ser traduzido como “drogado”), a tradutora preferiu manter o título para a versão nacional.
Se em “Junky” Burroughs relatou suas experiências como usuário de drogas, tentando passar de uma maneira descomplicada sua relação com o vício. Passava no período em que escrevia ” por um momento embora degradante, de euforia, de esperança em se tornar um escritor reconhecido e ganhar dinheiro. No apêndice da edição de Queer relançada em 2017, Burroghs faz o seguinte relato:
“As razões para eu ter escrito Queer foram mais complexas, e até hoje elas não estão claras para mim. Por que eu teria desejado fazer um relato tão detalhado dessas lembranças extremamente dolorosas, desagradáveis e dilacerantes? Eu escrevera Junky enquanto sentia estar sendo escrito por Queer. O esforço servia também para garantir que eu continuaria a escrever no futuro, ou seja, e para que fique bem claro: a escrita como vacina. No momento em que se escreve algo, ele perde o poder de surpreender, exatamente como um vírus que se vê em desvantagem quando, enfraquecido, tiver proporcionado o surgimento de anticorpos alertas. Assim, botando a experiência no papel, eu adquiria alguma imunidade contra outras perigosas empreitadas do tipo” (pág.120)
Ou seja, Queer foi escrito como uma forma de, ao seu ver, se vacinar contra a dor causada por aquele período, em que vivendo no México, se apaixonou pelo jovem Allerton, que costumava frequentar o mesmo bar que ele, o Ship Ahoy, onde passava horas jogando xadrez com Mary, uma jovem norte-americana de cabelos vermelhos. A dor citada vem pelo fato de seu flerte com Allerton custar a dar certo, e que, quando funcionou e passaram a se relacionar, o jovem frequentemente lhe rejeitar abruptamente, em um momento em que seu desejo já se encontrava em um estágio obsessivo.
“Sabia que não tinha como encontrar o que desejava com Allerton. O tribunal dos fatos tinha rejeitado sua petição. Mas Lee não podia desistir. “Quem sabe não descubro uma maneira de alterar os fatos”, pensou. Estava preparado pra assumir qualquer risco, a realizar qualquer ação extrema. Como um santo ou um criminoso procurando que nada tivesse a perder, Lee ignorava o clamor por limites de sua carne repressora, cautelosa, amadurecida e medrosa” (pág. 55)
Lee, como Burroughs se refere na obra, convida Allerton para uma busca de uma planta chamada “yage”, da qual ouviram dizer que um cientista colombiano extraiu uma droga chamada telepatina, capaz de aumentar a sensibilidade telepática. Algo como manipulação mental. Ter o poder de fazer com que a outra pessoa, através de seus pensamentos, faça o que você quer que ela faça. Não é muito difícil imaginar por que Bill a desejava tanto, e conseguiu convencer Allerton a uma busca pela America do Sul, passando pelo Panamá e indo ao Equador.
Queer não é uma grande obra. Te transmite os aborrecimentos do autor a ponto de te deixar aborrecido, e já vimos aqui os motivos de ter sido escrito assim. Mas aos interessados pela vida no mínimo peculiar que levou William Burroughs e por sua mente intrigante, vale à pena. Não foi à toa que “Bill” foi um mentor e guia para Kerouac, Ginsberg entre outros. Sua mente era intrigante. Sua busca por “yage” neste livro é um dos exemplos de como ele tinha a capacidade de se mostrar interessante ao ser tão experimental e além de seu tempo. Embora soe um pouco fora da casinha demais, Burroughs era extremamente inteligente e intenso, e foi esta intensidade para a vida que, no que se diz respeito a paixão, também lhe roubava todas as suas energias por mergulhar tão profundamente no que lhe despertava desejo.
Uma resposta
“Jamais vou esquecer o horror indizível que gelou a linfa das minhas glândulas quando a tal palavra venenosa marcou a ferro meu cérebro cambaleante: homossexual. Eu era homossexual. Pensei naquelas falsas mulheres de rosto pintado e com um sorriso idiota que eu tinha visto numa boate em Baltimore. Seria possível que eu fosse uma daquelas coisas inumanas? Eu perambulava pelas ruas num estado de atordoamento, como se tivesse sofrido uma concussão leve. Eu podia muito bem ter acabado com tudo, ter dado fim a uma existência que parecia não me oferecer nada além de miséria e humilhação grotescas. Mais nobre seria, pensei, morrer como um homem do que levar adiante uma vida de aberração sexual. Foi uma bichona velha quem me ensinou que eu tinha a obrigação de seguir em frente e carregar meu fardo com orgulho pra todo mundo ver, superar o preconceito, a ignorância e o ódio com conhecimento, sinceridade e amor. Sempre que sentisse a ameaça de uma presença hostil, liberar uma nuvem espessa de amor como a de um polvo quando libera sua tinta para se defender.”
Fim de ato. Desçam as cortinas.
Se encerra basicamente aqui a melhor obra beatnik já publicada.