A morte forçou Flaubert a deixar seu último romance, Bouvard e Pécuchet, inacabado. Curioso destino para o homem que foi, e é, o paradigma do escritor obsessivo. Flaubert via suas páginas sempre como inacabadas e punha-se a reescrevê-las incessantemente em busca da perfeita completude. O inacabamento de Bouvard e Pécuchet, porém, assume um sentido que está ligado ao próprio enredo do romance. Sua incompletude sugere um livro potencialmente infinito.
Bouvard e Pécuchet são homens de meia idade, na beira dos cinqüenta anos, que se conhecem e logo ficam amigos. Reclamam das mesmas coisas, têm o mesmo trabalho como escriturários, têm a mesma frustração com a vida que levam. A morte do pai de Bouvard lhe lega uma bela herança capaz de fazer com que a dupla saia de seus empregos e se mude para um sítio. Ali, vão dedicar-se ao estudo de várias áreas do conhecimento humano tais como agricultura, arboricultura, medicina, química, fabricação de compotas, astronomia, geologia, arqueologia, espiritismo, hipnose, filosofia, história, estética, religião, etc. Fracassam em todos eles.
Os dois homens poderiam viver milênios. Poderiam dedicar suas forças a tudo que a mente humana é capaz de conhecer. O livro, pois, poderia ter episódios e capítulos constantemente adicionados a ele. É uma obra aberta, não apenas no sentido eco-haroldiano, da obra aberta a múltiplas interpretações, mas também no sentido de ser, em tese, passível de infinitas adições sem que o enredo se rompa. Augusto de Campos, no seu ensaio “O Flaubert que faz falta”, percebe bem essa característica:
Um livro aberto, mais do que inacabado, inacabável, e a todo momento adicionado, coletivamente, de novos capítulos.
Augusto refere-se aqui tanto ao enredo do romance quanto ao “Dicionário de Idéias Feitas” e ao “Catálogo das Idéias Convencionais”. Ambos são os complementos do livro e a suma dos estudos inesgotáveis de Bouvard e Pécuchet. Mas antes de abordá-los, voltemos um pouco. O que será que levou esse dois homens já maduros a viverem uma vida de estudos numa casa de campo?
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Primeiro, a frustração com suas próprias vidas. Ser escriturário lhes parecia um ofício banal. A amizade que construíram reforçou a auto-estima de cada um, e eles passaram a crer que podiam fazer mais, fazer coisas mais nobres do que trabalhar num escritório. Segundo, havia neles uma espécie de fetiche do conhecimento. Acreditavam que os grandes homens, os homens realmente importantes, são os que se dedicam a alguma matéria, os que detêm conhecimentos precisos e preciosos, os que pensam os grandes problemas da humanidade. É esse fetiche que os impulsiona de estudo a estudo, elegendo como a área mais importante do conhecimento humano aquela que no momento mais os interessa.
Mas fracassam. Em tudo. Seria culpa deles ou dos autores que liam? Bouvard e Pécuchet se lançam com tal intensidade a cada novo estudo que parece que são mesmo vocacionados para essa vida. Mas basta uma experiência fracassada, ou a montanha de dúvidas geradas por opiniões divergentes sobre um mesmo assunto, para se paralisarem. O ímpeto inicial cessa e logo um novo interesse surge. Esse movimento constante tem seus dois momentos, o inicial e final, resumidos em uma frase do narrador seguida por uma exclamação de Bouvard:
A ânsia de verdade tornava-se para ele [Pécuchet] uma sede ardente.
E logo a seguir, Bouvard:
– Oh! A dúvida, a dúvida! Antes o nada!
A ânsia pela verdade e a paralisação pela dúvida. Como alcançar qualquer conhecimento sem ser passando por esses estágios? Sem o impulso de querer saber algo e sem tentar minimamente resolver as dúvidas subseqüentes? Mas será possível chegar de fato a um conhecimento seguro, que possa ser defendido a despeito de todas as dúvidas? Bouvard e Pécuchet não conseguem. E o que o livro mostra, afinal, é uma grande sátira ao conhecimento. Ao fetiche do conhecimento.
Os dois senhores tinham a ambição da sabedoria. Terminam eruditos das dúvidas, dos erros, dos enganos. Flaubert expõe esse “lado B” do conhecimento, um que não leva a esclarecimento algum. O que impressiona a dupla é a quantidade de bobagens, falácias e equívocos que os especialistas nas mais variadas matérias cometeram. Esgotam-se tanto nessa busca pela verdade que chegam a planejar suas mortes. Falham também no suicídio.
Mas, seguindo as notas deixadas por Flaubert sobre suas intenções para o final do livro, Bouvard e Pécuchet, numa espécie de fechamento de ciclo, voltariam a ser os escriturários que eram. Voltariam a copiar textos, mas com uma intenção distinta: a de colecionar todas as tolices humanas. Criam então o “Dicionário das Idéias Feitas” e o “Catálogo das Idéias Convencionais”. Uma espécie de vingança contra o conhecimento.
É de se pensar que, se Bouvard e Pécuchet não atingiram a sabedoria que pretendiam, ao menos tornaram-se capazes de espreitar a tolice alheia, essa “faculdade lastimável”, conforme diz o narrador. Se essa atitude não gera uma visão de mundo muito sólida, expõe ao menos as limitações do intelecto, especialmente daqueles tidos por grandes intelectuais. Seria isso uma espécie de sabedoria? Se a dupla é capaz de identificar a tolice alheia seriam capazes também de identificar a inteligência? Ou restaria a idéia de que nosso intelecto é apenas um gerador de enganos?
Nas cartas que escreveu (cuja edição brasileira, selecionada e organizada por Duda Machado, tem o justo e cervantino título de Cartas Exemplares) Flaubert diz:
A biblioteca de um escritor deve se compor de cinco a seis livros, fontes que é preciso reler todos os dias. Quanto aos outros, é bom conhecer e só. Mas há tantas maneiras diferentes de ler e como ler bem exige muito espírito!
Noutro trecho:
Como seríamos sábios, se se conhecessem bem somente cinco ou seis livros.
Uma biblioteca de cinco ou seis livros parece exageradamente pequena. Ainda mais para Flaubert, que diz ter consultado ao menos 1500 para fazer o seu Bouvard e Pécuchet. Mas Flaubert tem razão: o conhecimento extensivo talvez não seja o mais profundo. Mesmo o conhecimento mais profundo talvez não seja o verdadeiro. De que nos adiante o estudo então? De que nos vale nosso intelecto que é, bem ou mal, nosso único instrumento de compreensão da realidade?
Lembro de passagem do belo livrinho de Vilém Flusser, A dúvida, em que critica o que chama de “intelectualização do intelecto”. Lembro ainda os famosos koans da filosofia zen, cujo objetivo é o estilhaçamento da lógica habitual para que uma nova percepção das coisas surgisse. Mas não avanço nesses paralelos. Deixo Flaubert falar por último, com um trecho de uma carta sua a Mlle.Leroyer de Chantepie, de 18 de maio de 1857:
Há um sentimento, ou melhor, um hábito que parece lhe faltar, a saber o amor da contemplação. Tome a vida, as paixões e a você mesmo como um tema para exercícios intelectuais. Você se revolta contra a injustiça do mundo, contra sua baixeza, sua tirania e todas as torpezas e imundícies da existência. Mas você o conhece bem? você estudou? você é Deus? Quem lhe diz que seu julgamento humano é infalível? que seu sentimento não lhe atrapalha? Como é que podemos, com nossos sentidos limitados e nossa inteligência finita, chegar ao conhecimento absoluto do verdadeiro e do bem? Alcançaremos jamais o absoluto? É preciso, se se quer viver, renunciar a ter uma idéia nítida do que quer que seja. A humanidade é assim, não se trata de mudá-la mas de conhecê-la.
Entraria esse trecho no “Catálogo da Idéias Convencionais” da dupla flaubertiana?
Imagem: Encyclopédie Larousse
Cahoni Chufalo é formado em Letras, com pós-graduação em critica e curadoria de arte.