A máquina de fazer espanhóis (Valter Hugo Mãe): a metafísica de um cotidiano inevitável

A máquina de fazer espanhóis, por fim, não é algo positivo. Entrar numa máquina sem querer entrar e sair de lá diferente. É essa a proposta.

“era ainda pequena, como acho que somos todos nós para as coisas mais tristes.”
(p. 52, A máquina de fazer espanhóis)

Por onde um livro começa e por onde um livro termina? Para Valter Hugo Mãe, A Máquina de Fazer Espanhóis (publicado em 2010) é um livro que começa pelo desejo de escrever sobre a doença que levou embora o seu próprio pai e que termina com um desespero que, para muitos, pode ser cortante.

A Máquina de Fazer Espanhóis é um livro sobre a terceira idade, sobre ficar velho, sobre a solidão, sobre as dores e as fraquezas – do corpo e da alma. É também sobre abandono familiar, mas também sobre amizade. É tudo sobre isso ao mesmo tempo, num emaranhado de pensamentos e conclusões de um homem que, munido de toda a sua tristeza e revolta, vai para um lugar não desejado, o asilo.

O livro, nos primeiros capítulos, passa uma intensão de subjetividade por meio dos nomes dos capítulos que parecem não combinar, em um sentido prático, com os títulos, mas, à medida que a leitura avança, o leitor pode identificar o nome do capítulo no meio do texto, de maneiras tão singulares e belas, que deixa qualquer um aturdido. É isso? Pode pensar com um leve sorriso o leitor feliz, por ter em mãos uma obra tão rica em conteúdo, estilo técnica e metafísica!

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A Metafísica

Metafísica significa aquilo que está para além da física, além da ciência, como se buscasse uma essencia invisível das coisas, o inexplicável, o sobrenatural. Essa palavra está muito presente na obra de Fernando Pessoa e, com brilhantismo, Valter Hugo Mãe nos apresenta um personagem que – supostamente – seria o “Esteves sem metafísica”, do poema Tabacaria:

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.

(Álvaro de Campos, in “Poemas”, Heterônimo de Fernando Pessoa)

Quando há o reconhecimento desse personagem como ingrediente principal da história, outras possibilidades chegam no conteúdo do livro, pois, se o personagem-narrador, Antonio Jorge da Silva, preocupa-se em viver com ou sem metafísica, a obra fica toda impregnada desses mistérios da vida, mas também da morte, das durezas dos caminhos, das escolhas pessoais e políticas de cada um.

O personagem-narrador

“fui barbeiro, e li livros, como deviam ler todas as pessoas para ultrapassarem a condição pequenina do quotidiano e das rotinas.”
(p. 93)

Antonio Jorge da Silva era barbeiro. Com o seu trabalho, vivia bem, mas era o amor por Laura que o mantinha seguro da vida que levava. Um homem comum, sem muitas pretensões, que um dia ajudou um comunista, mas que gostaria mesmo de viver longe da política, replicando um “fascismo dos bons homens”, como o próprio personagem sugere.

É interessante perceber o quanto esse personagem carrega tantas dores, uma depressão tão intensa e um pessimismo tão profundo, mas, conforme a história vai se desmembrando, com os personagens que vão surgindo e as histórias que acontecem dentro do asilo, faz a gente acreditar que, em meio a isso tudo – e é tanta dor mesmo, o Sr. Silva é um homem que está interessado pela vida, pelo final de sua vida e também dos outros idosos que moram com ele. Não sabemos se esse interesse é reconhecido por ele, mas, no mínimo, é a forma de adaptação, como ele transformou aquela vida numa vida possível.

Uma rotina que tinha tudo para ser monótona é transformada pelas ações do personagem. Em alguns momentos, com suas amizades, o leitor poderá rir; em outros, no entanto, será um mergulho íntimo na vida de um homem tão cheio de mágoas e pesadelos. Porém, é tudo tão comovente.

o estilo

valter hugo mãe utiliza a prosa poética e não usa letras maiúsculas. é um pouco estranho, mas faz total sentido dentro de sua obra, então, não estranhe e mergulhe. Apenas nos capítulos que aparecem autoridades (policiais, no caso), aparecem as letras maiúsculas. é lindo. mas veja bem, isso é para os grandes. ele usa apenas vírgulas, nada de parágrafos para mostrar um diálogo, por exemplo, uma coisa meio saramago. é lindo, lindo…

A máquina de fazer espanhóis
Edição da Globo Livro (Biblioteca Azul)

Salazar, o líder fascista

Salazar foi um línder fascista português, que comandou o país por 35 anos. O seu regime opressor, fica evidente na história, por mais que não seja o foco principal da obra, é impossível não perceber o quanto um governo totalitário pode dilacerar a vida das pessoas, mesmo que indiretamente. As pessoas do asilo, podemos considerá-las, sobreviventes desse regime instaurado em 1926 e que chegou ao fim apenas em 1974.

A vida e a morte

Quando se fala em metafísica, quando se tem em mãos um livro todo empregnado de metafísica, mesmo com personagens gritando o oposto disso, o mistério está lá. Do título, que o leitor só entenderá no final da obra, aos personagens que agarram pequenas felicidades, o livro propõe reflexões profundas sobre a vida e a morte. Como é estar perto da morte? Como é ser idoso? É possível revisitar o passado sem sofrer? É possível, no final da vida, reconstruir-se?

As metáforas

A máquina de fazer espanhóis, por fim, não é algo positivo. Entrar numa máquina sem querer entrar e sair de lá diferente. É essa a proposta. Se pensarmos na ditadura, ela é assim, se pensarmos em um asilo, pode ser assim também. Se pensarmos nos imigrantes, também é possível ser assim. Ainda podemos pensar em coisas menos palpáveis, como o amor, a saudade, a solidão, a angustia – são todas as coisas que podem ser como máquinas a nos transformar em outras coisas. E aguentamos? E sobrevivemos?

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