Apresento essas duas jovens e talentosas escritoras, e sigo torcendo para poder ler mais: Aline Bei e Clarissa Wolff.
Outubro foi um mês esquisito, pesado e que me causou alguns problemas de foco, concentração e contenção de lágrimas, afetando diretamente o meu ritmo de leitura, seja ela por obrigação ou não. Nesses momentos mais difíceis, quando mesmo aquilo que nós mais gostamos de fazer demandam um esforço maior, eu busco ler coisas que me prendem mais rápido, que me fazem virar páginas de maneira obsessiva e que me afetam de uma forma mais direta. Exatamente por isso, os livros escolhidos para essas ocasiões são, de modo geral, quadrinhos, com seu apelo visual, e os contemporâneos, que me conquistam pela proximidade e pela linguagem.
Nesse verdadeiro mês do horror, a segunda categoria, através do trabalho de duas escritoras brasileiras contemporâneas, me proporcionou pelo menos dois dias (quase que) livres do sofrimento por conta das eleições. Mas também permitiu que eu pensasse em como é lindo, apesar de todos os pesares, viver na mesma época de gente tão talentosa, de gente que consegue, de formas bem diferentes, expressar toda uma sociedade e seus conflitos, gente que brinca com as palavras de uma maneira tão bonita e cujo trabalho nos inquieta e toca tão profundamente.
Hoje, e de forma bem introdutória, eu apresento essas duas jovens e talentosas escritoras, e sigo torcendo para poder ler e falar mais sobre elas por aqui.
O peso do pássaro morto
“chorei aberta
(O peso do pássaro morto, p. 155)
pra sair a
dor,
sorriso eu não sabia mais em que lugar que ele
ficava no corpo.”
Formada em Letras pela PUC/SP, Aline Bei fez sua estreia, em 2017, com a publicação de O peso do pássaro morto (Editora Nós). Nas pouco mais de 160 páginas desse romance, que também é um pouco poesia, a autora conta a vida de uma personagem sem nome; são pedaços de uma existência marcada pelo tornar-se, seja pessoa ou, como enfatiza Simone de Beauvoir, mulher, através das vivências, das partidas e das liberdades que, tão facilmente, se vão. Focando em idades específicas – 8, 17, 18, 28, 37, 48, 49, 50 e 52 anos -, o livro mostra, de forma fragmentada e sem muitas explicações, quantas vozes e caminhos moldam uma existência, como as coisas mais simples podem ganhar outro significado se observadas com atenção, e como é possível haver beleza mesmo nos momentos onde a escuridão parece não ter fim.
O peso do pássaro morto é daqueles livros que se lê em uma sentada, mas cuja profundidade te segue por dias, meses e, acredito, anos. É também daqueles livros difíceis de se falar, que provocam as mais diversas sensações, não passam imunes aos grifos, e que o simples lembrar já traz de volta as lágrimas aos olhos. Ele é, como diz a dedicatória da cópia que ganhei de uma amiga querida, sentimento puro.
Todo mundo merece morrer
“Depois que eu morri, o caos foi instaurado. Um cara de vinte e poucos anos impediu que mais pessoas morressem, e os celulares de quem restava vivo foram inundados por notícias de seu ato heróico. Um padre deu entrevistas, uma pré-adolescente magra demais chorava, uma mulher tentava ir embora de qualquer jeito sem que ninguém falasse com ela, outra gritava no telefone, outro cara de vinte e poucos com um coque na cabeça digitava sem parar no celular, um moleque nervoso soluçava, um homem acalmava uma mulher que chamava pelo filho, outro homem fumava um cigarro, uma mulher toda vestida de preto observava em silêncio, paramédicos, jornalistas, policiais invadiam o lugar, o meu corpo era levado, e eu não vi quem me matou.”
(Todo mundo merece morrer, p. 158).
Clarissa Wolff é daquelas pessoas que parecem fazer de tudo: ela escreve sobre literatura na Carta Capital, trabalha com comunicação em uma empresa de cosméticos, já trabalhou com música (e, para essa informação, utilizo apenas a minha memória de fangirl), e manteve, por algum tempo, o canal Redoma de livros no Youtube. Todo mundo merece morrer (Verus Editora) é, também, seu livro de estreia, publicado em 2018.
Nesse romance, que funciona como uma colcha de retalho, temos contato com várias versões e visões de um mesmo episódio. Após o primeiro e certeiro tiro, um assassinato em massa é evitado pela atitude heroica de um rapaz e, assim, pessoas são poupadas. Porém, quando as conhecemos mais de perto, percebemos que, de certa forma, todo mundo ali “merecia” morrer. A autora é crítica, mas não expõe diretamente suas verdades; as vozes que interessam são as de seus personagens, são eles quem relatam, se apresentam e emitem ou não juízo de valor. Aqui, lemos treze pessoas diferentes, que têm – de fato vozes diferentes (coisa que nem sempre acontece em textos tidos como polifônicos), conhecemos sua essência, o que de pior eles fazem ou já fizeram, mas também entendemos suas motivações, sentimos raiva, desprezo e choramos pelas dúvidas e culpas que carregam. Clarissa tem uma forma poderosa de contar histórias e me faz torcer para poder ler mais de sua obra.
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