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Mal-entendido em Moscou (Simone de Beauvoir): decepções individuais e coletivas

Eu gostaria de ver Moscou, neste momento, pelo olhar de um turista, no caso, de uma turista, pois escolhi o livro Mal-entendido em Moscou (Simone de Beauvoir), escrito pela filósofa francesa Simone de Beauvoir. E acho que fiz uma boa escolha!

Como definido no #desafiolivroecafe2019, o livro do mês de janeiro deveria se passar em um local que sempre quis visitar. Pois bem. Entre tantos lugares que ainda quero conhecer, tive que escolher um e optei pela cidade de Moscou, capital da Rússia. Então, surgiu outro dilema: qual livro vou ler? Eu poderia ter escolhido algum clássico escrito por autores russos que tanto adoro, como Dostoiévski, Bulgákov, Tolstói, mas preferi uma outra abordagem.

Mal-entendido em Moscou
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Este pequeno ensaio, escrito entre 1966 e 1967, deveria compor a coletânea A mulher desiludida, de 1968 (cuja resenha você pode ler aqui). Porém, Beauvoir decidiu substituí-lo por “A idade da discrição”. O texto, assim, foi publicado pela primeira vez apenas em 1992, na revista Roman 20-50, e traz a história do casal de professores acadêmicos universitários Nicole e André, que viajam, no início da década de 1960, para Moscou, a fim de visitar a filha de André, Macha, fruto de seu primeiro casamento. Durante a estadia na capital russa e em outras cidades próximas, os dois se deparam com reflexões doloridas sobre o envelhecimento, velhos rancores do casamento e com as novidades e desencantos com a URSS.

Ícone do pensamento filosófico feminista e uma das principais representantes do movimento existencialista francês do século XX, Simone de Beauvoir completaria 110 anos em 2018. Em sua homenagem, a Nova Fronteira lança o box especial Memórias, com a trilogia autobiográfica da escritora e filósofa. COMPRE NA AMAZON

Sim, o livro pode ser resumido pela palavra decepção: os personagens se mostram decepcionados no plano individual – enquanto pessoas e enquanto casal – e no plano coletivo – com a Rússia dita “socialista”. Em 64 páginas, acompanhamos uma discussão intensa sobre a identidade, tanto do ponto de vista masculino (André) quanto feminino (Nicole). Afinal, quem é esse casal que está envelhecendo (e não quer aceitar os efeitos da passagem do tempo)? Que país é esse que se diz socialista e flerta com o capitalismo e os interesses pessoais? Como lidar com as mudanças, sejam elas físicas, emocionais, sociais, políticas, que geralmente destroem as expectativas construídas sobre algo ou alguém?

Em Mal-entendido em Moscou (Simone de Beauvoir) a crise existencial é profunda…

Como em todos os romances escritos por Beauvoir que li até o momento, a crise existencial é profunda, especialmente na figura da mulher, que se questiona sobre o seu passado, o casamento, a maternidade, as renúncias tão comuns da existência feminina em uma sociedade patriarcal e machista. Eu sempre acabo comparando a experiência da leitura de qualquer obra dela ao contato que tenho com os livros da Elena Ferrante, pois a sensação de sufocamento e angústia é a mesma e talvez isso se deva ao fato de que as duas escritoras trazem à tona, sem floreios, todo o peso da existência humana. No caso de “Mal-entendido em Moscou”, isso se projeta também no campo político: como podemos criar uma sociedade justa e unida quando as partes que a compõem (ou seja, nós) são tão singulares e não sabem o que querem, não sabem se comunicar, não sabem coexistir?

Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre

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É impossível não dissociar a história do livro com a própria trajetória de Simone de Beauvoir e seu esposo, o também filósofo Jean-Paul Sartre, grandes pensadores da esquerda e ativistas políticos em meados do século XX. Ambos tiveram estadias regulares na URSS, já que eram convidados da União dos Escritores, entre 1962 a 1966, logo, puderam observar as transformações culturais e políticas do país, o que talvez explique o testemunho crítico do regime socialista e sua política externa. Simone, nas palavras de Nicole, critica a burocracia e morosidade russa, algo que aparece também nas obras de outra mulher, a jornalista e escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, por exemplo.

“Moscou mudara um pouco; mas para pior. (Pena que as mudanças ocorram quase sempre no mau sentido, tanto para os lugares como para as pessoas.) Avenidas foram abertas e antigos bairros, demolidos. Proibida para automóveis, a Praça Vermelha parecia maior, mais solene: um lugar sagrado. De modo lamentável, enquanto antigamente ela despontava até o céu, agora, atrás da Catedral de São Basílio, um imenso hotel barrava o horizonte.”

p. 22

Ver Moscou pelos olhares de Nicole e de André, criados magistralmente por Beauvoir, foi uma experiência interessante, talvez menos alegre do que gostaria, porém mais verdadeira. Foi um passeio não só pela bela e gélida capital russa, mas também pela alma humana e suas incoerências, que também se refletem no modo como nos organizamos social e politicamente. Mal-entendido em Moscou (Simone de Beauvoir) serve para mostrar que em qualquer lugar que visitamos – pode ser uma outra cidade ou durante o próprio processo de autoconhecimento -, precisamos manter o olhar crítico e a percepção do outro. E, para isso, também precisamos estar preparados para a decepção.

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