“Longe da árvore” é um tratado em favor das diferenças que nos fazem, afinal, humanos
Já escrevi por aqui falando sobre a minha admiração pelo escritor e ativista Andrew Solomon, especialmente pela sua coragem para tratar de temas ainda considerados tabus, como depressão, suicídio, homossexualidade etc. Além de se aprofundar em estudos, entrevistas e obras literárias, Solomon também bebe em suas próprias vivências e as expõe de uma maneira muito sincera e sensível.
Considerado desde pequeno um “esquisito”, teve dificuldades em se enturmar na escola. Além da dislexia, seus interesses – ópera e poemas da Emily Dickinson – o colocavam à margem do grupo de colegas esportistas. Já na fase adulta, enfrentou a decepção familiar ao afirmar ser gay aos 22 anos. Hoje, casado e pai de quatro filhos entre biológicos e adotivos, construiu uma carreira repleta de prêmios e best-sellers justamente sobre alguns dos temas que marcaram os dias mais difíceis de sua vida.
Longe da árvore, em mais de 1000 páginas, parte dessas experiências e de extensivas pesquisas e conversas com famílias com crianças consideradas “desajustadas” aos padrões sociais”. O livro recebeu o National Book Critics Circle Award na categoria não ficção e foi escolhido como um dos melhores livros de 2012 pelo jornal americano The New York Times. Além disso, em 2019, foi adaptado para o documentário Longe da Árvore, da diretora e produtora Rachel Dretzin.
Confira a sinopse e alguns trechos da obra:
“Diagnosticado com dislexia na infância, Andrew Solomon conta que a superação dessa deficiência só foi possível porque ele pôde contar com a paciente dedicação dos pais, em especial de sua mãe, num lar estruturado. Criado num ambiente privilegiado – a culta classe média judaica de Nova York -, Solomon sempre teve acesso a todo afeto e atenção terapêutica necessários ao tratamento.
Entretanto, quando sua homossexualidade latente transpareceu na adolescência, os mesmos pais que sempre o haviam cercado de carinho e compreensão reagiram com intolerância e vergonha. Ele teve de se afastar traumaticamente da família para conseguir vivenciar a plenitude de sua identidade sexual.
Muitos anos depois, para tentar entender as relações entre essas duas identidades divergentes das expectativas dos pais, e como elas puderam provocar sentimentos tão antagônicos, o autor realizou uma abrangente pesquisa sobre o universo da diversidade em famílias com filhos marcados pela excepcionalidade.
Surdos, anões, portadores de síndrome de Down, autistas, esquizofrênicos, portadores de deficiências múltiplas, crianças prodígios, filhos concebidos por estupro, transgêneros e menores infratores: dez “identidades horizontais” (isto é, divergentes dos padrões familiares, linguísticos e sociais predeterminados), sujeitas em graus distintos a influências genéticas e ambientais, compõem a constelação de temas deste magnífico tour de force sobre os sentidos de ser diferente e, principalmente, de aprender a amar e respeitar as diferenças.” (Sinopse de Longe da árvore)
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1. As maçãs que caíram longe da árvore
“As crianças que descrevo aqui têm condições horizontais que são estranhas a seus pais. Elas são surdas ou anãs; têm síndrome de Down, autismo, esquizofrenia, ou múltiplas deficiências graves; são prodígios; são pessoas concebidas por estupro ou que cometem crimes; são transexuais. O desgastado ditado diz que a maçã não cai longe da árvore, o que significa que uma criança se assemelha a seus progenitores; essas crianças são maçãs que caíram em outro lugar — algumas, um par de pomares de distância, outras, do outro lado do mundo. No entanto, miríades de famílias aprendem a tolerar, aceitar e, por fim, celebrar crianças que não são o que elas originalmente tinham em mente. Esse processo de transformação é com frequência facilitado e, às vezes, confundido por políticas de identidade e progressos médicos que se infiltraram nas famílias em um grau que seria inconcebível há vinte anos.” (p. 16)
2. A importância da aceitação familiar
“Divulgar a felicidade aprendida por esses pais é vital para sustentar identidades que hoje estão vulneráveis à erradicação. Suas histórias apontam para todos nós um caminho para expandir nossas definições de família humana. É importante saber como pessoas autistas se sentem em relação ao autismo, ou anãs em relação ao nanismo. A aceitação de si mesmo faz parte do ideal, mas sem aceitação familiar e social ela não pode amenizar as injustiças implacáveis a que muitos grupos de identidade horizontal estão sujeitos, e não provocará uma reforma adequada. Vivemos em tempos de xenofobia, quando a legislação, com apoio da maioria, abole os direitos das mulheres, de pessoas LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), de imigrantes ilegais e de pobres. Apesar dessa crise de empatia, a compaixão prospera em casa, e o amor da maioria dos pais dos quais fiz o perfil atravessa linhas divisórias. Entender como eles chegaram a pensar bem de seus próprios filhos pode dar a nós motivo e discernimento para fazer o mesmo. Olhar no fundo dos olhos de seu filho e ver nele ao mesmo tempo você mesmo e algo totalmente estranho, e então desenvolver uma ligação fervorosa com cada aspecto dele, é alcançar a desenvoltura da paternidade egocêntrica, mas altruísta. É incrível a frequência com que essa reciprocidade é alcançada — com que frequência pais que supunham que não poderiam cuidar de uma criança excepcional descobrem que podem. A predisposição para o amor dos pais prevalece na mais penosa das circunstâncias. Há mais imaginação no mundo do que se poderia pensar.” (p. 17)
3. Auto estima e alta estima social
“Meu estudo abrange famílias que aceitam seus filhos, e como isso se relaciona com a autoaceitação dessas crianças – uma luta universal que negociamos em parte através das mentes dos outros. Ao mesmo tempo, ele analisa a forma como a aceitação da sociedade em geral afeta tanto essas crianças como suas famílias. Uma sociedade tolerante abranda os pais e facilita a autoestima, mas essa tolerância evoluiu porque indivíduos com boa autoestima relevaram a natureza equivocada do preconceito. Nossos país são metáforas de nós mesmos: lutamos pela aceitação deles como uma forma deslocada de luta para aceitar a nós mesmos. A cultura é também uma metáfora de nossos pais: nossa busca pela alta estima no mundo em geral é apenas uma manifestação sofisticada de nosso desejo primordial do amor dos pais. A triangulação pode ser estonteante.” (p. 41)
4. Consertar o defeito?
“A reparação do corpo e do preconceito social arraigado são objetivos que dançam uma valsa preocupante: ambos os consertos podem ter consequências indesejáveis. Um corpo reparado pode ter sido alcançado por meio de um trauma brutal e em reação a pressões sociais injustas; um preconceito reparado pode eliminar os direitos que sua existência havia levado a existir. A questão do que constitui qualquer diferença protegida tem um peso político enorme. As pessoas com deficiência estão protegidas por leis frágeis, e se for decidido que têm uma identidade, em vez de uma doença, elas podem perder essas salvaguardas.” (p. 48)
5. O autismo
“Embora a vida de muita gente com autismo siga sendo um tanto inescrutável, em geral a vida das pessoas cujos filhos têm autismo é reconhecidamente dura: às vezes, horrivelmente dura. O preconceito social agrava a dificuldade, mas é ingenuidade propor que tudo seja preconceito social; nada é mais devastador do que ter um filho incapaz de exprimir amor de modo compreensível, um filho que passa a noite inteira acordado, requer supervisão constante, grita e esperneia, mas não consegue comunicar o motivo ou a natureza de seu mal-estar: essas experiências desnorteiam, esmagam, exaurem e nada têm de gratificantes. Pode-se mitigar o problema com uma combinação de tratamento e aceitação, específica em casa caso. É importante não se deixar levar pelo impulso de só tratar ou pelo de só aceitar.” (p. 343)
6. A traição da esquizofrenia
“O trauma da síndrome de Down é estar presente já durante o pré-natal e, portanto, poder solapar os primeiros estágios do vínculo afetivo. O desafio do autismo é começar ou ser detectado no início da infância e, assim, transfigurar a criança à qual os pais já se afeiçoaram. O choque da esquizofrenia é manifestar-se no fim da adolescência ou no começo da vida adulta e os pais terem de aceitar que o filho que eles conheceram e amaram durante mais de uma década pode estar irremediavelmente perdido, ainda que pareça ser o mesmo de sempre. […] A traição da esquizofrenia é esta justaposição irracional de coisas que desaparecem e coisas que não desaparecem. A esquizofrenia pode suprimir a capacidade de se ligar a outra pessoa, ou de amá-la, ou de nela confiar, o uso pleno da inteligência racional, a aptidão de funcionar em qualquer contexto profissional, a faculdade básica de cuidar do próprio corpo, assim como grandes extensões de autoconsciência e clareza analítica. Como é mais notório, o esquizofrênico desaparece num mundo alternativo de vozes que ele, de maneira equivocada, percebe como exteriores; essas relações geradas internamente tornam-se muito mais reais e importantes que qualquer interação com o mundo exterior.” (p. 348-349)
7. O crime na juventude
“Milhares de instituições foram criadas para aliviar os problemas decorrentes de grande número de identidades horizontais: escolas para surdos, programas de integração, hospitais para esquizofrênicos. A maior parte dos menores infratores é internada em instituições públicas mais voltadas para punir do que para reabilitar. Muitos deles não podem ser recuperados; a ideia de uma reabilitação praticamente universal é uma fantasia liberal. Entretanto, há um bom número de jovens condenados em quem o dano é pontual, o que leva ao imperativo moral de tratar todos eles. Um oncologista pode tolerar a morte da maior parte de seus pacientes por causa dos muitos que ele salva; se pudéssemos redimir ainda que 10% de futuros criminosos de carreira, reduziríamos o sofrimento humano e economizaríamos em processos judiciais e cadeias. A pena de prisão se baseia na crença popular de que quanto mais punirmos pessoas, mais seguro se torna o país. Isso lembra a suposição de que quanto mais você surrar seus filhos, melhores eles serão.” (p. 624)
8. Transgêneros como ameaças à ordem
“A cultura ocidental aprecia a dualidade: a vida parece menos assustadora quando podemos separar o bem e o mal em pilhas distintas, quando separamos a mente do corpo, quando os homens são masculinos, e as mulheres, femininas. As ameaças de gênero são ameaças à ordem social. Se as regras são são respeitadas, tudo parece permitido, e Joana d’Arc deve ir para a fogueira. Se permitirmos que as pessoas cortem seus pênis e peitos quando quiserem, que possibilidade teremos de manter a integridade do nosso próprio corpo? O notório psicanalista Richard C. Friedman disse uma vez, de brincadeira: ‘Seria bom que todos eles usassem camisetas com o dístico ‘Não se preocupe – não vai acontecer com você'”. (p. 694)
9. A paternidade
“Fui criado com medo de doenças e deficiências, inclinado a desviar os olhos de qualquer pessoa muito diferente – embora sempre soubesse que eu mesmo era diferente. Este livro me ajudou a eliminar esse impulso preconceituoso, que eu sempre soubera que era mau. A óbvia melancolia nas histórias que ouvi talvez pudesse ter me afastado da paternidade, mas teve o efeito oposto. A paternidade foi um desafio para essas famílias, mas quase nenhuma delas parecia arrependida. Elas demonstraram que com disciplina emocional e disposição afetiva é possível amar qualquer pessoa. Essa lição de aceitação foi reconfortante para mim, foi a certeza de que um amor difícil não tem menos valor que um amor fácil.” (p. 784).
E você já leu Longe da árvore ou algum outro livro de Andrew Solomon? Conte para nós nos comentários!