Cem anos de Clarice Lispector: estamos perto do coração selvagem da vida?

No dia 10 de dezembro de 2020, comemora-se o centenário de nascimento de um dos grandes nomes da literatura brasileira e mundial: Clarice Lispector. Há uma série de eventos celebrando sua vida e obra, então sou apenas mais uma voz falando sobre a ucraniana naturalizada brasileira. Mas sua importância se mantém tão atual e seus livros ainda mexem tanto conosco que resolvi arriscar e trazer minhas impressões a respeito de Perto do Coração Selvagem, seu romance de estreia, e do lugar que Clarice tem em nossas vivências enquanto leitoras e leitores.

Não custa lembrar que não sou nenhuma especialista em Clarice Lispector, então não farei nenhuma abordagem acadêmica sobre ela. Diria até que não consegui, ainda, enfrentar todos os seus livros por um certo receio do quanto eles poderão me destruir, rs. Enfim, medos à parte, meu primeiro contato com a escritora se deu no Ensino Médio, graças ao meu professor de português que gostava de Clarice e a citava com frequência em sala. Foi com essa inspiração que conheci a sonhadora e ingênua Macabéa, protagonista de A hora da estrela. Com o tempo, a partir de um contato maior com a literatura escrita por mulheres, motivada especialmente por projetos como o Leia Mulheres, ler mais Clarice se tornou cada vez mais urgente. Foi então que busquei encarar outra obra: Aprendendo a viver, uma seleção de crônicas confessionais escritas na década de 1970 para o Jornal do Brasil. Me encantei pela complexidade, pela ironia, pela sinceridade dessa escritora retratada tantas vezes como enigmática e implacável.

Um romance que faltava

Já a leitura de Perto do coração selvagem foi uma experiência em duas partes. Confesso que, na primeira vez, não consegui me conectar ao livro, mas fiquei muito feliz em poder ter a oportunidade de o reler para a mediação do clube de leitura do Sesc Sorocaba, porque pude, finalmente, perceber o quão poderoso ele é. A obra foi publicada em dezembro de 1943 e, como já escrevi, é o romance de estreia de Clarice. Aliás, uma estreia arrebatadora, que recebeu ótimas críticas e venceu o Prêmio Graça Aranha, em 1944.

E por que eu usei essa palavra “arrebatadora”? Porque não podemos esquecer o contexto em que ele foi lançado: num ambiente fortemente marcado pela produção masculina (que infelizmente ainda se mantém com seu padrão já bem conhecido: o escritor branco-cis-hétero-classe média alta-morador do eixo Rio-SP) e dentro de uma tendência mais ou menos predominante, que era a regionalista. Clarice, com seus 23 anos, chegou trazendo uma obra completamente subversiva, que tira o foco do objeto narrado e o leva para a própria narração, para um mergulho na consciência da personagem, um mergulho na própria linguagem. Não foi à toa que o grande crítico literário Antonio Candido afirmou que era “um romance que faltava”.

Considerando essa natureza da obra e o seu ineditismo, é difícil definir o gênero e resumir Perto do Coração Selvagem. Alguns o consideram um romance de formação, já que acompanhamos Joana, a protagonista da história, da infância até a fase adulta. Mas também é um romance psicológico, introspectivo, escrito em um fluxo de consciência e em uma ruptura com o enredo factual, em um estilo que nos remete a James Joyce e Virginia Woolf. E só para lembrar, o título se inspira num trecho de O retrato do artista enquanto jovem, de Joyce (que também aparece na epígrafe e que foi indicado pelo amigo de Clarice, o escritor Lúcio Cardoso): “Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida.” Antonio Candido ainda aponta o livro como um romance de aproximação do narrador – logo, do leitor -, à protagonista. Mas a questão é que temos a personagem principal, Joana, que nos repele, nos confunde, nessa narrativa que é mar, que vai e vem, que pode ser ameno e violento.

Joana: o prenúncio das mulheres de Clarice

Nessa estreia, temos Clarice em seu estado puro, com elementos narrativos que vão aparecer ao longo de sua trajetória como escritora já presentes em Joana, essa menina-mulher que acompanhamos desde a sua infância, nessas idas e vindas do enredo. E quem é, afinal, Joana? O primeiro dilema para responder essa pergunta é tentar organizar a história da protagonista de uma forma mais tradicional, já que o livro não se pretende linear. Mas vamos em frente com o desafio, tentando não deixar muitos spoilers (ainda que o foco da obra não esteja nos acontecimentos em si, mas em como eles atravessam a personagem principal).

Joana fica órfã ainda pequena. Sua mãe é uma figura ausente, mas não menos importante na sua formação; é retratada pelo seu parceiro, pai da menina, como uma incógnita, misteriosa, arredia. Após a morte do pai, Joana vai para a casa dos tios, e então vemos que a relação com a tia não é nada tranquila. Diante de um episódio em que a criança rouba um livro, a mulher fica horrorizada com a natureza fria e amoral da sobrinha, a chamando em certo momento de víbora (uma palavra-chave neste romance). Joana, então, acaba sendo colocada num internato e, nesses saltos narrativos, somos apresentados à figura de um professor, uma espécie de mentor pelo qual Joana é apaixonada. É exatamente em uma cena, em que aparecem Joana, o professor e sua esposa, que a autora nos revela a descoberta que a jovem faz do seu corpo, da sua condição de mulher, em uma passagem dura da infância para a puberdade. Temos então uma menina se tornando adulta, sozinha, odiada pela única família que lhe resta, nutrindo uma paixão platônica pelo professor casado… “O que será de Joana?” é uma pergunta que ecoa várias vezes na primeira parte do livro.

Na segunda parte, Joana se casa com Otávio, que antes de se relacionar com a protagonista, era noivo de Lídia. Pois bem, o homem mantém um caso extraconjugal e Lídia engravida. Diante dessa situação, em certo momento, Lídia chama Joana para uma conversa. O encontro das duas mulheres cria uma das cenas mais memoráveis do livro e vai além de um embate entre a esposa traída e a amante: é um conflito entre duas personagens opostas, entre duas ideias de mulher. Afinal, até então como as mulheres eram retratadas na literatura? Ou eram a virgem, ou a prostituta, ou a adúltera, sempre definidas a partir de um olhar masculino. Clarice descontrói, “complexifica” esse retrato do feminino, e traz a mulher livre por si só na figura de Joana, que pensa e pensa sobre o seu próprio pensamento – e por isso mesmo, acaba sendo vista como má, dentro e fora da literatura. 

Entre outros personagens que surgem no livro, há também um homem, não nomeado, que se relaciona com Joana, criando um novo triângulo amoroso. Misteriosamente ele a abandona. No final, vemos Joana se libertando de todas essas pessoas e embarcando numa viagem não só geográfica, mas psicológica, na qual ela abraça sua natureza selvagem.

Perto do coração selvagem: Um romance a ser sentido

O enredo pode ser comum, mas a inovação que Clarice traz é o modo como ela constrói a natureza dessa personagem e como esta é atingida pelo acontecimentos. Desta forma, ela escreve um livro que precisa ser experimentado, sentido, assim como sente sua protagonista. Não é uma tarefa fácil ou confortável. Joana é uma personagem complexa, deslocada, que tem nojo do ser humano, que tem aversão à bondade e predileção pela maldade. Desde cedo está nessa constante contestação da felicidade e da vida como um todo: “depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois?”“Ser feliz é para se conseguir o quê?”. Ela não é boa, nem busca ser: é amoral, é fora do normal, do esperado para uma mulher. E isso assusta a tia, o marido, todos ao redor e até mesmo a nós, leitoras e leitores, quase 60 anos após a publicação do livro.

Joana é a víbora, é o animal se aproximando do seu coração selvagem. Há uma ferocidade interna nessa mulher que está constantemente febril, com sede, se sentindo seca. Uma criatura que pede água, que pede terra, que pede fogo. Aliás, quando pensamos nessa protagonista, que se conecta com a natureza e com o seu lado selvagem, é impossível não enxergar a própria Clarice. A relação com o mar, por exemplo, é algo que já aparece em Aprendendo a viver. Nas belas lembranças de sua infância, a escritora compartilha a história de quando o seu pai levava a família de bonde para Olinda e todos se banhavam no mar antes mesmo de tomar o café da manhã:

O cheiro do mar me invadia e me embriagava. As algas boiavam. Oh, bem sei que não estou transmitindo o que significavam como vida pura esses banhos em jejum, com o sol se levantando pálido ainda no horizonte. Bem sei que estou tão emocionada que não consigo escrever. O mar de Olinda era muito iodado e salgado. E eu fazia o que no futuro sempre iria fazer: com as mãos em concha, eu as mergulhava nas águas, e trazia um pouco do mar até minha boca: eu bebia diariamente o mar, de tal modo queria me unir a ele. 

Aprendendo a viver, p. 18 (versão eBook)

Na fluidez das águas, na finitude e no renascimento da vida, a jovem é esse animal que não pode ser domado pelo casamento nem pela sociedade que determina um papel passivo para a mulher.

A propósito, o casamento é um tema que merece destaque. Vamos pensar no impacto causado por este livro, que trouxe uma protagonista que não tem qualquer visão romântica pelo casamento, que vê o marido como um estranho, um intruso que atrapalha o curso dos seus pensamentos? O matrimônio é visto como prisão, como um meio de adestramento.

— Isso vem contra mim. Pois eu não pensava em me casar. O mais engraçado é que ainda tenho a certeza de que não casei… Julgava mais ou menos isso: o casamento é o fim, depois de me casar nada mais poderá me acontecer. Imagine: ter sempre uma pessoa ao lado, não conhecer a solidão. — Meu Deus! — não estar consigo mesma nunca, nunca. E ser uma mulher casada, quer dizer, uma pessoa com destino traçado. Daí em diante é só esperar pela morte. Eu pensava: nem a liberdade de ser infeliz se conserva porque se arrasta consigo outra pessoa. Há alguém que sempre a observa, que a perscruta, que acompanha todos os seus movimentos. E mesmo o cansaço da vida tem certa beleza quando é suportado sozinha e desesperada — eu pensava. Mas a dois, comendo diariamente o mesmo pão sem sal, assistindo à própria derrota na derrota do outro…Isso sem contar com o peso dos hábitos refletidos nos hábitos do outro, o peso do  leito comum, da mesa comum, preparando e ameaçando a morte comum. Eu sempre dizia: nunca.

Perto do coração selvagem, p. 125.

E como fica Otávio no meio disso tudo? Ele se vê diminuído pela força de Joana, por sua animalidade, por sua frieza. Mesmo na conversa que mulher tem com Lídia, na qual muitos esperam que a esposa lute pelo amor do marido, Otávio aparece como um mero reprodutor, que pode dar um filho para ela assim como deu à Lídia. Percebem a subversão narrativa, já que até hoje nós que somos vistas como úteros ambulantes? Esse diálogo como um todo é muito relevador, porque é um momento em que duas mulheres se enfrentam em seus desejos, mas isso não inclui necessariamente a figura masculina – Otávio. O importante aqui é que se trata de um embate entre o eu e o outro, na verdade, uma construção desse eu e desse outro, como comentei acima.

Liberdade pela linguagem

Joana se solta de todas essas amarras sociais, buscando ser eterna pela imaginação, pelo pensamento, num lugar que não tem espaço para o bem ou para o mal, e se liberta pela linguagem. Na verdade, para mim, Perto do Coração Selvagem é uma ode de Clarice ao papel da linguagem enquanto um meio de construir o ser, afinal, é por meio dela que nos definimos, que caracterizamos o mundo e aquilo que sentimos e até sonhamos. Então, Clarice cria maravilhosamente bem, por meio da linguagem e da metalinguagem, uma outra mulher. A mulher que é singular, é livre, e cuja liberdade é vista como maldade (como já dizia George Eliot, “Espera-se que toda mulher tenha as mesmas motivações, ou então que seja um monstro.”).

A certeza de que dou para o mal, pensava Joana. O que seria então aquela sensação de força contida, pronta para rebentar em violência, aquela sede de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a segurança irrefletida de uma fera? Não era no mal apenas que alguém podia respirar sem medo, aceitando o ar e os pulmões? Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreendida. […] Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de inconsequências, de egoísmo e vitalidade. Sim, ela sentia dentro de si um animal perfeito. Repugnava-lhe deixar um dia esse animal solto. Por medo talvez da falta de estética. Ou receio de alguma revelação… Não, não – repetia-se ela –, é preciso não ter medo de criar. No fundo de tudo possivelmente o animal repugnava-lhe porque ainda havia nela o desejo de agradar e de ser amada por alguém poderoso como a tia morta. Para depois no entanto pisá-la, repudiá-la sem contemplações. Porque a melhor frase, sempre ainda a mais jovem, era: a bondade me dá ânsias de vomitar.

Perto do coração selvagem, p. 15-16.

Mas aqui cabe uma reflexão, despertada após conversas com uma amiga muito querida. De qual mulher estamos falando? Afinal, a personagem nos evoca a figura da mulher branca de classe média dos anos 1940, destinada a carregar um ideal feminino desde o seu nascimento, sendo uma boa filha, uma boa esposa, uma boa mãe, uma boa mulher dona de casa. E, ao buscar romper com esse modelo, a nova linguagem da qual se vale Joana abarca a vivência de outras mulheres? Assim, quando pensamos nessa imagem da mulher liberta, que não se encaixa nos padrões que aprisionam, precisamos lembrar desses recortes e do lugar do qual escreve Clarice e superar a ideia naturalizada de mulher mesmo dentro das discussões feministas (vide críticas ao feminismo liberal, por exemplo).

Joana se questiona a todo momento sobre quem é (algo que não ocorre com Macabéa, por exemplo, e talvez seja interessante pensar o porquê dessa diferença). Como mulheres, podemos entender esse frequente questionamento, esse constante “tornar-se”, como afirmou Simone de Beauvoir, esse construir-se em vários seres, em identidades fluidas, até contraditórias. Mas será que esse “tornar-se” é permitido a todas? Infelizmente, a pergunta é retórica. A existência foi e é negada a muitas através da violência institucional, da violência física e psicológica, da violência sustentada pela própria linguagem… Como Grada Kilomba afirma na introdução do necessário Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano, ao sair de Portugal, ela também teve que aprender uma nova linguagem, um novo vocabulário, na qual pudesse se encontrar, ser a pessoa que ela é, finalmente existir.

Uma (re)leitura necessária

Graças à releitura e às trocas em torno de Perto do coração selvagem, percebi o quanto esse livro ainda é necessário. Na escrita fragmentada que vai e vem no tempo e na linguagem, somos transportados para o interior de Joana, em um contato cru, direto, com a consciência dessa figura e – por que não? – com os nossos próprios pensamentos, nossas misérias, nossa humanidade e selvageria.

Compre “Perto do coração selvagem” na Amazon

Ao fim, voltemos à epígrafe: no começo, temos um homem livre, feliz, perto do coração selvagem da vida. Com Clarice, temos uma mulher liberta de sua infância, livre das expectativas, enxergando-se como um cavalo novo, também perto do coração selvagem.

[…] eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro!, o que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.

Perto do coração selvagem, p. 173.

Sem a pretensão de concluir nada, mas sim lançar reflexões e provocações para mim e para quem me acompanhou até aqui, espero que o mergulho em Perto do coração selvagem nos incite a buscar e defender, de fato, as existências plurais, complexas e ferozes de Clarices, Joanas, Gradas, Marias e tantas outras mulheres!


Leia mais – Água viva (Clarice Lispector): a orgíaca beleza confusa