Por Mari Paulino, editora de redação e social media na Brasa Mag.
Em um momento tão conturbado de nossa história, é importante revisitar o passado para compreender e refletir sobre acontecimentos que foram verdadeiras viradas de chave culturais.
Para puxar essa reflexão é preciso voltar para 1997, ano em que o Brasil conheceu o “Sobrevivendo no Inferno”, um dos maiores álbuns já feitos no Brasil. O disco, que começa com uma oração, te prepara para ouvir histórias que já estavam presentes no inconsciente coletivo de quem vivia nas periferias das grandes cidades, São Paulo em especial.
No especial de 20 anos do lançamento de “Sobrevivendo no Inferno”, vários intelectuais pretos foram convidados pelos Racionais Mc’s para falar sobre a obra. Neste vídeo, Djamila Ribeiro destaca como os Racionais conseguiram “organizar seu ódio” para contar essa história.
Sobrevivendo no inferno da década de 1990.
Fernando Henrique Cardoso era o representante do Estado Brasileiro. Celso Pitta acabava de iniciar um mandato na cidade de São Paulo após quatro anos da política de Paulo Maluf. O país vivia a democracia há apenas doze anos e passava por problemas sociais profundos. A taxa de desemprego entre os jovens ultrapassava os 30% e nós tínhamos o terceiro maior índice de homicídio das Américas. Também houve um crescimento das igrejas neopentecostais.
Nessa época sombria, o rap nacional se desenvolveu e formou uma identidade política de forma independente, longe do mainstream.
“Vim para abalar seu sistema nervoso e sanguíneo”.
— Trecho de “Capítulo 4, Versículo 3”.
Não foi só o rap nacional que mudou depois de “Sobrevivendo no Inferno”. O pensamento crítico dos jovens nas periferias também foi afetado. E foi através desse álbum que os “playboys”, jovens ricos e brancos de classe média alta, passaram a consumir o rap nacional.
“Seu filho quer ser preto, ah, que ironia”.
— Trecho de “Negro Drama”.
Em 2007, o disco foi eleito como o 14º melhor álbum de música brasileira pela revista Rolling Stone Brasil. Importante pontuar que não apenas de lírica se sustenta o trabalho, mas sim da viagem sonora dos samples usados por KL Jay que usa referências que começam na década de 1960. Depois do “Sobrevivendo no Inferno”, todo artista que usasse as músicas de base do disco também estaria o referenciando.
“Dedo na Ferida”, de Emicida e Criolo, citou “Capítulo 4, Versículo 3” ao usar a frase “a fúria negra ressuscita outra vez”.
Em 2012, Zudizilla usou o trecho “meu estilo é pesado e faz tremer o chão” na música “21 Steez”.
Já “Tô Ouvindo Alguém me Chamar” foi citada por L7NNON na faixa “$enhor”, presente no álbum “Padrim” (2019) do FBC.
“Eu e a molecada da rua ouvindo Racionais
Mas naquele tempo nós nem se chamava de cria
Lembra daquela ‘Eu tô ouvindo alguém me chamar’?
Eu sempre quis ser o que chamava e distribuía”
A música “Eu Sou Função”, do Dexter em parceria com o próprio Mano Brown, foi influenciada por “Fórmula Mágica da Paz”, canção que fala sobre os “função” que foram exterminados pela Polícia Militar no começo dos anos 1990.
“Sei lá, muito velório rolou de lá pra cá. Qual a próxima mãe que vai chorar?”
— Trecho da “Fórmula Mágica da Paz”.
Mais de duas décadas depois do lançamento, essa música segue atual. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, 78% dos mortos por intervenção policial em 2019 eram pretos e pardos. Os dados do Atlas da Violência apontam que uma pessoa negra tem 3 vezes mais chances de morrer de forma violenta no Brasil do que não-negros. Ainda em 2020, 8 a cada 10 pessoas mortas pela PM são negras ou pardas.
“Sobrevivendo no Inferno” estruturou uma nova escola do rap nacional, organizando pensamentos dos jovens que cresceram o ouvindo. Assim, também formou doutores e mestres.
Como disse Malcolm X: as únicas pessoas que realmente mudaram a história foram as que mudaram o pensamento dos homens a respeito de si mesmos.
Foto de capa: Racionais MC’s na Basílica de Nossa Senhora do Carmo, 1997, São Paulo ( Foto Klaus Mitteldorf/Divulgação).