O lugar é um livro da escritora francesa Annie Ernaux que traz uma perspectiva muito íntima e verdadeira sobre família. Um olhar para o passado, para a história da sociedade a partir de uma figura central: o seu próprio pai. Um livro brilhante!
O livro começa com uma cena da autora-personagem realizando uma entrevista para uma vaga como professora. Momento em que ela precisa realizar uma aula-teste. A cena descrita pela autora é uma representação muito fiel a esses momentos da profissão. Uma aula que não é uma aula, que se parece com uma. Quase que um teatro… mas no fim dá certo.
Na sequência desse momento somos levados a acompanhar o pensando da Annie Ernaux sobre a possibilidade de ficcionalizar a história de sua família. E, sabiamente (como uma merecedora do Prêmio Nobel de Literatura), Annie confessa que apenas será possível essa volta para o passado se ela se distanciar e relatar tudo de uma forma objetiva.
E neste sentido vem todo um conceito muito explorado pela autora: a autoficção e, no caso do livro “O lugar”: a chamada de autossociobiografia.
- Auto: porque é sobre si
- Socio: porque traz um panorama social da França do início do século XX, o trabalho no campo, a chegada das indústrias e tudo mais.
- Biografia: claro, porque a autora vai contar sobre sua infância e adolescência, com foco nas ações, encontros e desencontros com o seu pai. Uma figura que nos prende porque existe uma representação muito forte do homem comum do início do século XX: esse homem trabalhador, simples, do campo, que não teve oportunidades de estudo e se tornou meio duro.
A história paterna de Annie Ernaux representa também outros pais. Ou seja: ler o livro é identificar-se com a própria história. E talvez isso seja um ponto alto nas obras de Annie: uma mulher europeia, uma francesa investigando lugares que conversam com a gente também. Filhas, mães, pessoas do Brasil trabalhador, que saiu de um lugar de miséria para um lugar mais digno sabe-se lá como.
E podemos dizer, então, que apenas depois disso é que a história realmente começa. E é linda sim, é cativante sim, é comovente sim. Mesmo a própria autora nos dizendo que quer escrever uma história distante de tudo isso…
Ernaux comenta que tentou escrever um romance tendo o pai dela como personagem principal, mas que sentiu um mal-estar quando começou a produzir e por isso, “O lugar” nasceu dessa tentativa de relatar algo tão íntimo sem romancear. E é claro que ela atinge isso maravilhosamente bem. Ela tem uma escrita muito simples e elegante ao mesmo tempo. E mesmo parecendo uma contradição, é possível perceber esse distanciamento, como se ela olhasse para o passado por uma janela estreita. Porém, o molde dessa janela é lindo e comovente. Um espetáculo literário.
Um recurso de escrita
Um dos recursos que ela usa é resgatar frases da família, jargões familiares. Toda família tem o seu. E esses jargões acabam construindo uma identidade familiar, eles estão amarrados na gente. E a Annie Ernaux vai marcando em itálico essas frases de uma forma que intensifica a história, traz uma potência de identificação e também exclusividade, como se fossem as marcas da família mesmo. Acaba abrindo um diálogo com o leitor.
E claro que esses jargões não sem sempre falados, mas eles vão se construindo na atitude familiar, na forma de conduzir a vida, nas alegrias e nas dificuldades.
Os jargões da família de Annie Ernaux são:
“dar uma lição”…. “ficar no seu lugar…” “o que vão pensar da gente…” “não se deve dar um passo maior que a perna”.
O afastamento da linguagem
“O lugar” também nos traz algumas reflexões a respeito da linguagem. Esta que possui uma função de comunicação entre pessoas, muitas vezes acontece o inverso: conforme a forma de se comunicar e consequentemente entender e viver o mundo distancia as pessoas.
E isso fica muito claro na obra de Annie Ernaux, pois a partir do momento em que ela vai para a universidade e aprende não somente sobre a língua (porque ela fez um curso de Letras), mas também sobre vivenciar e estar no meio de intelectuais, de uma classe social muito diferente de sua família, o distanciamento com a figura paterna vem de uma forma dilaceradora. É triste de acompanhar, ao mesmo tempo muito real. É uma falha da linguagem, porque ela nos molda muito mais do que imaginamos. É o que mais temos de poderoso no sentido de sermos quem a gente é.
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Ler Annie Ernaux é sempre bom!
Este foi o segundo livro da autora que li. O primeiro foi “O Jovem”, que também caminha nesse sentido de rever e resgatar uma significação maior para o passado. Nesta segunda leitura, o que posso dizer é que a obra dela vai ganhando mais sentido. Ler mais de uma obra de um autor é muito interessante para entendermos o estilo, a voz que nos conta cada história. Independente de ficção autoficcção, autossociobiografia, o que Annie Ernaux faz é nos presentear com uma literatura de qualidade e beleza ímpar. Leia!
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Ela tem uma escrita muito simples e elegante ao mesmo tempo. E mesmo parecendo uma contradição, é possível perceber esse distanciamento, como se ela olhasse para o passado por uma janela estreita. Porém, o molde dessa janela é lindo e comovente. Um espetáculo literário.