Eu não gosto do vazio da poesia. Me refiro ao vazio que fica na folha de papel; tanto espaço para ser preenchido, mas que fica lá, branco como um nada; e algumas palavrinhas no canto do papel, espremidas, diminuídas,  me causam um enorme pavor.

Mas existem alguns autores que me fazem acredita na poesia, como Hilda Hilst, Sylvia Plath, Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa. Ele também faz rimas, mas atinge a rima através das sensações, de sentimentos capazes de nos revelar o que há de mais escondido no mundo, mesmo que fiquem poucas palavras num cantinho do papel.

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Em 2011, na faculdade, eu tive de apresentar uma poesia de Fernando Pessoa. Foi muito difícil escolher, pois o meu critério foi selecionar uma poesia sem rimas e que, ao ser narrada, soasse como uma prosa, preenchendo qualquer sensação de espaço vazio. Escolhi “Apontamento”, uma poesia que ele escreveu por meio de seu heterônimo Álvaro de Campos no ano de 1929, que está classificada como poesia metafísica.

O que é a metafísica?

A metafísica é o inexplicável, é como buscar conexões em coisas que, na prática, não teriam sentido, como tentar explicar o nada, o vazio, Deus, o tudo, enfim, criar uma materialidade – pelo menos no papel – do que não é material, do que está muito distante do nosso corpo físico, mas que mesmo assim sentimos a presença.

Então, no poema “Apontamento”, Fernando Pessoa, apesar da sensação de tristeza, ela também me causa uma sensação de liberdade e de autoconhecimento, de compreensão do que é invisível. Não sei se minha interpretação está correta, não sei se meu raciocínio está complementando tudo o que essa poesia tem a dizer. Mas eu sei da emoção que o poema me causou.

Ensaiei Apontamento por semanas, decorei, treinei no espelho e, confesso que, achei tão babaca ter de apresentá-lo num teatro. Mas, talvez isto a metafísica explique, quando comecei a narrar ali, no palco, com todos aqueles rostos perdidos no escuro me olhando, eu me emocionei. E quando pronunciei as últimas palavras senti uma emoção varrer meus olhos, que ficaram úmidos, e só não chorei porque eu precisava sair do palco para a próxima apresentação. Essa poesia é a que mais me preencheu desde então, e mesmo num papel com espaços em branco, ela é completa: nada falta, nada sobra. Me emociona profundamente.

Apontamento

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

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3 Comentários

  1. Parabéns pelo post em que faz referências interessantes sobre: Fernando Pessoa e eu
    que você minha amiga: Francine Ramos descreveu tão bem que resolvi reescrever aqui, OK:
    Eu não gosto do vazio da poesia. Me refiro ao vazio que fica na folha de papel; tanto espaço para ser preenchido, mas que fica lá, branco como um nada; e algumas palavrinhas no canto do papel, espremidas, diminuídas e, que me causam um enorme pavor, cheia de rimas, elas me incomodam, como se fossem a garantia da estagnação do autor, parece simples fazê-las, parece zombaria, e por isso eu prefiro a prosa.
    Gostei de ler mais este post sobre o autor que também tive que favorritar!

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