Priya’s Shakti é o primeiro volume de uma série de quadrinhos que conta a história de uma menina indiana que, misturando cultura e religião, escancara e problematiza os lugares comuns de uma sociedade patriarcal. Personagem e obra nasceram como forma de protesto pelo caso de estupro coletivo ocorrido em 2012: 

    A ideia começou desse jeito. Eu percebi que o estupro e a violência sexual na Índia eram culturais e que se sustentavam pelo patriarcalismo, pela misoginia e pela percepção popular (BBC)*

    O caso de Nova Déli

    Quando uma estudante de fisioterapia de 23 anos é agredida, estuprada e morre duas semanas após o ocorrido, uma onda de protestos tem início ao redor de todo o país. Poucos meses depois do caso, esta onda de indignação e o clamor público levam à uma mudança na legislação da Índia.

    Em paralelo, Ram Devineni, um dos nomes por trás da história de Priya, começa a percorrer a região em busca de relatos de casos parecidos com o da jovem de Nova Déli. E, em trabalho conjunto com ativistas das questões de violência de gênero, filósofos, sociólogos e poetas, cria a personagem que dá nome à obra e que faz eco a voz de centenas de indianas.

    Eu conversei com sobreviventes de ataques de gangues de estupradores e elas disseram que foram desencorajadas por familiares e pela comunidade a procurar justiça. Elas também foram ameaçadas pelos estupradores e suas famílias. Nem a polícia as levou à sério (BBC)*

    O quadrinho, que é fruto do trabalho dele, com a colaboração de Lina Srivastava e Dan Goldman, foi publicado em 2014. A obra, que ainda não tem tradução para o português, mas possui distribuição gratuita pela internet, além de uma edição para Kindle, se transformou em posteres e murais espalhados pela favela de Dharavi, considerada a maior da Ásia. Ademais, cópias físicas da obra foram distribuídas em colégios e a personagem chegou a receber o título de heroína pelo UN Women.

    Atenção: O texto a seguir contém spoilers!

    As dores de se cair em um destino de mulher

    Parvati e Shiva viviam em completa harmonia e devoção um para com o outro no monte Kailash. Porém, em determinado momento, a deusa decide deixar o local para meditar e parte com o desejo de que, mesmo em sua ausência, o universo permaneça em perfeito equilíbrio. 

    Nas páginas que seguem a narrativa, a deusa é chamada em oração pela humana Priya e, olhando para a garota, consegue observar um vida de privações, solidão e sofrimento. De uma criança encantada pelo universo e cujo sonho era se tornar professora, Priya se vê podada de seus anseios e desejos, que pouco espaço tinham em um destino de mulher. A partir deste momento, Parvati, olhando com raiva para as injustiças cometidas para com seus devotos, observa a menina se transformar em mulher e sente as dores da violência física e sexual destinada aos seres humanos que não nascem homens. 

    Aqui vemos uma jovem que, apesar da dores de um estupro coletivo, é acusada de envergonhar a família. Dentre os balões com as falas daqueles que deveriam estar ao seu lado e a amparar, vemos acusações comuns naquela e em nossa realidade: “você não deveria estar fora de casa tão tarde” é, por exemplo, um dos argumentos usados por um dos estupradores e assassinos do caso de Nova Déli** e, no quadrinho, funciona como uma das afirmações que justifica a expulsão da menina.

    É nesse momento que Parvati resolve encarnar na pele da jovem e, num ato pouco pensado, parte em nome dela para confrontar um de seus violentadores. Quando as coisas quase saem da pior forma possível e Shiva observa com repulsa os feitos da humanidade, uma assembléia dos deuses é convocada. Dentre conversas e deliberações, as entidades classificam o estupro como um ato de violência e dominação e afirmam que o divino vive dentro de homens e mulheres de forma igual e equivalente.

    Leia mais: [HQ] Deconstruindo Una, um livro sobre violência de gênero

    As páginas seguintes passam a retratar um Shiva irado, questionando a “perdição” da humanidade e disposto a punir os homens (e consequentemente as mulheres) com a impossibilidade de gerar filhos. Ao mesmo tempo, outros deuses dizem ver uma salvação para a raça humana e, buscando evitar a desgraça destes, travam uma guerra com aqueles que almejavam a destruição e a punição de seres tão falhos.

    Após a intervenção de Kali Ma, Shiva aceita por fim a guerra, mas coloca como condição que a humanidade demonstre poder fazer diferente. É aqui que Parvati aparece para Priya pela primeira vez e, juntas, entoam um mantra que, convocando Shakti – energia cósmica que tem força para mover todo o universo -, consagra as mulheres que ajudaram a Índia a conquistar a sua independência.

    Assim, humana e espírito retornam à vila, enfrentam o temor da população e os convencem a tentarem juntos trazer a mudança e a esperança que a Índia tanto almejava. Priya recebe, enfim, o apoio da família e caminha ao lado deles através das vilas, levando uma mensagem de equidade e paz.

    A história termina com o desejo de que mulheres sejam vistas como iguais aos homens e de que a elas seja dado o direito de estudar. Primeiro volume de uma série que também ganhou uma versão audiovisual, a saga da jovem continua em outros dois tomos, Priya’s Mirror, lançado em 2016, e Priya and the Lost Girls, publicado em 2019.

    Em certo sentido panfletário, Priya’s Shakti é um bom exemplo de como fantasia, aspectos culturais e (uma triste) realidade podem andar juntos, denunciando problemas, resgatando o passado e dando voz a alteridades colocadas à margem.

    * Os trechos citados foram retirados de uma entrevista que o cineastra e produtor, Ram Davineni, concedeu a BBC.

    ** India’s Daugther é um documentário sobre o caso de Nova Déli, com direção de Leslee Udwin.

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