Um texto de um jovem professor sobre a educação do presente e do futuro – e suas violências
A Educação do Futuro
Matheus Fernandes
.Era início de um novo dia em Bacabal, cidade relativamente grande do interior do Maranhão. Embora habitada pelos seus mais de cem mil cidadãos, o local não era tão desenvolvido ou chamativo assim. A vida lá seguia amena, monótona, com os dias sendo arrastados vagarosamente, dia após dia.
.O sol já erguia-se por dentre as densas nuvens cinzas que ocultavam-lhe a luz, permitindo-lhe apenas pequenos feixes de claridade, em um céu de cor azul Monte Sião que se revelava pouco a pouco. Os moradores da região preparavam-se para deixarem seus respectivos lares e ingressarem para a labuta diária que garantiria o sustento da família.
.Na rua, um senhor varria a calçada da casa em seu ritmo compassado, pais acompanhavam seus filhos à escola, cachorros vasculhavam o lixo deixado na esquina, enquanto homens de meia idade agrupavam-se na praça do Bom Pastor para conversar e jogar dominó. A cidade aos poucos ganhava vida.
.“Tic-Tac”
.Íris despertou um pouco mais tarde do que o habitual. Verificou apressadamente as horas do relógio na cabeceira ao lado e percebeu que já eram sete e meia da manhã. Estava atrasada.
.– Merda! – praguejou ela, sobressaltando-se da cama e correndo apressadamente para o banho na tentativa de ainda conseguir recuperar aqueles minutos perdidos. Escolheu uma roupa aleatória, fez um rabo de cavalo sem muita atenção, organizou seu material e caminhou para o local de trabalho. Já eram quase dez anos naquela profissão.
.Algo naquele dia aparentava estar fora do comum, a começar pela hora que acordara. Ela nunca havia se atrasado para o serviço, tampouco tinha o costume de dormir mais que o necessário, mesmo nos fins de semana. Na rua, pessoas passavam-lhe por perto quase que irreais, translúcidas. O sol, já altivo e brilhante no céu, não parecia emanar nenhum calor à sua pele. Fora o fato de ter acordado com um maldito som de ponteiro de relógio impregnado na sua mente. No entanto, decidiu ignorar tudo aquilo e continuou seu caminho. Tudo aquilo era coisa da sua cabeça, pensou por fim.
.No percurso para o trabalho, observou por entre dois prédios um pequeno consultório, discreto e já velho, quase impossível de ser notado devido às duas grandes construções que o rodeavam. De caráter pouco convidativo, havia uma pequena fachada já desbotada na entrada, que requeria esforço para identificar as gravuras. Após atentar bem, Íris finalmente conseguiu ler as inscrições: “O seu futuro está aqui”. E isso foi o suficiente para despertar uma confusão na mulher, como se de alguma forma ela já estivesse naquele local; o que era impossível, visto a sua incredulidade e por nunca ter dado crédito a esse tipo de charlatanismo. Ao olhar mais atentamente, percebeu dois vultos na janela, mas não conseguiu identificar quem eram e o que faziam lá. Por fim, deixou aquilo de lado. Não era de seu interesse e já estava atrasada o suficiente para o ofício.
.“Tic-Tac“
.– Bom dia, senhor Sebastião. Tudo bem? – cumprimentou Íris ao encontrar o porteiro. Seria mais um dia daqueles e Sebastião era um dos poucos naquele lugar que ainda mantinha um brilho e alegria que a confortava.
.– Bom dia, dona Íris. Tudo indo conforme a vontade de Deus – respondeu o homem como de costume, dando-lhe um sorriso simpático.
.“Dona Íris”, como era chamada pelo porteiro, seguiu adentro em direção à tarefa rotineira. Outrora, sua profissão possuía destaque e grande valor. Era algo admirável. Havia autoridade por quem a exercesse e todos os demais manifestavam profundo respeito. Violências, afrontas ou desrespeito inexistiam. Porém as coisas haviam mudado, e muito. Agora era um cargo cada vez mais ousado e poucos arriscavam, além dos que desistiam conforme o tempo, temerários por suas saúdes mentais e, sobretudo, por suas vidas.
.Enquanto refletia sobre essas coisas, ouvia-se os gritos, risadas estridentes, mesas sendo arrastadas; tudo isso em um som ensurdecedor presente em quase todas as salas dos corredores. “Mais um dia normal”, pensou Íris ao chegar na entrada de sua sala, respirar profundamente e entrar.
.“Tic-Tac”
.– Bom dia, turma – disse assim que entrou na sala, notando a zona que havia se instaurado durante a sua ausência e praguejando mentalmente por ter se atrasado tanto nesse dia.
.– BOM DIA, PROFESSORA ÍRIS! – responderam os alunos com excessiva altura. Alguns por gozação, outros por alegria ao vê-la. E isso era uma coisa que a professora aprendera a ponderar com o tempo e a saber o que ignorar.
.– Na aula de hoje, – continuou a professora, colocando os livros sobre a mesa, enquanto todos silenciavam, – veremos sobre as palavras heterosemânticas, que nada mais são que palavras de grafias iguais ou semelhantes entre duas línguas, mas de significados diferentes. Em outras palavras, nem tudo o que parecer ser, será.
.E estas foram umas das poucas palavras que a educadora conseguiu proferir durante toda aquela manhã. Pois pouco a pouco, o barulho e as conversas aleatórias foram ressurgindo diante daquele aglomerado de mais de quarenta alunos, numa sala construída para comportar pouco mais de trinta. Associado a isso, vinha o calor escaldante e as situações precárias existentes não só na sala, mas em toda a escola. Carteiras e ventiladores quebrados, paredes riscadas com obscenidades ou demarcadas por símbolos de facções era o que constituía aquele lugar, construído primordialmente para a educação e formação humana. Com isso, todo o planejamento de aula e conteúdos elaborados por Íris fora por água abaixo.
.O cenário era agora dividido por grupos dos mais diversos, pouco se importando para a presença ou não da professora. Conversas sobre o fim de semana, contações de piadas, alunos de cabeça baixa com fones de ouvido e outros no uso de smartphones era o que se encontrava ali. Dois ou três alunos ainda mantinham o olhar fixo na professora, esperando que esta fizesse algo em relação àquele pandemônio. E isso era algo impossível. Todos sabiam.
.– SOCORRO! TEM UM ALUNO FERIDO AQUI! – Gritou uma voz vinda da direção do pátio central da escola. Dois segundos foram o suficiente para deixar toda a turma em silêncio e estado de alerta, até todos romperem desgovernadamente ao encontro da voz que pedia por ajuda. Íris tentou ainda controlar a saída desenfreada dos alunos, mas já era tarde.
.“Tic-Tac“
.Quando todos chegaram no local, uma multidão já cercava o corpo agora moribundo. Um golpe de faca provocara o ferimento, encharcando aos poucos a camisa branca do defunto de um vermelho vivo. Ficara apenas a expressão de terror gravado no semblante do corpo que ali se encontrava sem vida. O olhar do garoto era agora de um vazio, talvez mirando em seus últimos momentos a direção em que seu assassino fugira. Provavelmente teria sido acerto de contas ou apenas rivalidade entre facções, cochichavam os alunos, enquanto toda a coordenação tomava providências e fazia ligações. O desespero e o medo eram perceptíveis no olhar dos que ali se encontravam. Afinal, era de conhecimento a existência de pequenos grupos criminosos e rivais formado por alunos, até mesmo do uso de drogas já flagrados atrás do ginásio. Aquele ambiente só tornava cada dia mais hostil.
.Não era a primeira vez que a escola presenciava atos violentos ou de vandalismo por ali. No pouco tempo em que Íris fora transferida para aquela nova instituição, já era de conhecimento interno o relato de professores ameaçados por alunos, ou de alunos portando armas brancas para acertos de contas entre alunos de outras salas. Vez ou outra tais ocorridos eram noticiados nos telejornais da região, causando indignação e medo na população. Afinal, quais seriam as providências a serem tomadas pelos governantes? Perguntava-se a população. E quais seriam as medidas das autoridades e das famílias desses alunos? Indagavam-se os professores.
.Naquele dia, as aulas foram suspensas e todos foram liberados. O quadro psicológico dos docentes agravava-se cada vez com os rumos que a educação percorria. Sessões de tratamento psiquiátrico, índices de depressão e ansiedade cresciam assustadoramente para aqueles que lecionavam em sala de aula. O medo e o uso de remédios antidepressivos faziam parte da vida desses profissionais. Ser professor significava se colocar cada vez mais em perigo. Aquela vida era como um pesadelo em que não se via a hora de despertar. Íris desejava que tudo aquilo não fosse nada mais que isso: um pesadelo. E que logo iria acordar e ver que nada daquilo era real.
.– Isso é um manicômio. – lamentou outra professora enquanto se retirava, agredida fisicamente na semana passada, quando uma aluna ficou inconformada com a nota que obteve. A garota recebera total apoio da mãe.
.“Tic-Tac”
.Percorrendo o mesmo caminho para casa, Íris caminhava agora lentamente enquanto refletia sobre tudo que acontecera naquela manhã, e qual seria o destino da educação e de professores a partir de agora. A realidade que vivia era totalmente diferente das teorias e cursos utópicos que preenchiam as faculdades e palestras educacionais que participara.
.Depois de andar alguns minutos, novamente passou em frente à casa que prometia a revelação do futuro em apenas alguns minutos. Algo ali a puxava como um imã, em um misto de curiosidade e mistério. No entanto, mais uma vez decidiu ignorar aquela sensação e ir para casa esquecer de vez aquele dia insano. Quando seu campo de visão já ia deixando de encontro com aquela casa, percebeu novamente que aquelas duas figuras ainda permaneciam lá dentro. Em um assalto de curiosidade, esforçou-se para ver melhor através da janela e descobrir a identidade daquelas pessoas. Uma estava sentada, segurando algo que parecia um pêndulo entre as mãos, enquanto a outra pessoa estava deitada sobre um sofá. Uma figura de mulher, aparentemente adormecida. Ao notar melhor, Íris percebeu que ali se encontrava nada mais que ela mesma naquele lugar. Foi quando sua visão escureceu e ela desmaiou.
* * *
.“Tic-Tac“
.– Eu quero que você atente-se bem para o som dos ponteiros do relógio, e quando eu contar até três, abra os olhos lentamente. – Falava uma voz a qual Íris ouvia como de fundo, ainda sem conseguir abrir os olhos e enxergar alguma coisa. Como se estivesse em um profundo sono, porém consciente.
.– Um, – continuou a estranha voz – dois… três. Acorde lentamente, Íris.
.Ao ouvir a ordem, a professora abriu os olhos sonolentos e percebeu-se confusa em uma espécie de consultório, deitada sobre um sofá de couro vermelho-vinho. O ambiente era razoavelmente pequeno, com uma prateleira abarrotada de livros, alguns cheios de pó ou com pequenos danos feitos pelo tempo e por traças. Acima do móvel, um relógio de parede marcava quase meio-dia. Estava diante da professora um homem de estatura mediana, trajando um terno preto fosco, encarando-a silenciosamente. Ao vê-lo, aos poucos a memória tornou-lhe a mente e logo lembrou de como e porque estava ali.
.– Tome – disse o homem oferecendo-lhe um copo com água, ao que Íris aceitou com um pequeno sorriso em agradecimento.
.– O que a fez procurar esse lugar? Com todo respeito, a senhora me parece excessivamente cética em relação a essas coisas. Já a vi parada algumas vezes observando o consultório do outro lado. Sua expressão dizia por si só.
.– E está certo. – disse a professora devolvendo-lhe o copo
– Mas as coisas chegaram a tal ponto, – prosseguiu – principalmente em minha carreira, que já não duvido de mais nada. Ainda mais agora, com tudo o que vi.
.– Entendo. – respondeu o homem, olhando-a fixamente, na espera que que a cliente falasse algo mais. No entanto, a professora aparentava estar imersa em pensamentos, balançando vagarosamente a cabeça, como se concordasse com alguma voz interior. E nisso seguiu um silêncio que durou algum tempo.
.“Tic-Tac“
.O som do relógio trouxe-a de volta para a realidade. O silêncio no ambiente já era incômodo. Íris notou o pequeno pêndulo balançando suavemente na mão do homem. Jamais imaginara-se em consultas de astrologias, cartomantes, previsões de futuro ou coisas do tipo. Mas agora, diante da situação que enfrentava todos os dias na sala de aula, quem sabe não valesse a pena saber sobre o que a aguardava na profissão que escolhera. Se nada daquilo fosse verdade, ela também não teria nada a perder. Preferiu arriscar. Ao pensar nisso, viu-se rindo da situação, embora parecesse impossível achar graça naquilo.
.– O que foi? – perguntou o hipnólogo – É sobre o que você viu?
.– Uma coisa é engraçada, pra não dizer o contrário. – Respondeu a professora. – Pois se eu soubesse o que eu veria, não teria vindo aqui.
.– Por quê? – perguntou curiosamente o homem.
.Após um silêncio que pareceu uma eternidade, a professora encarou o homem com um olhar quase vazio, as pálpebras baixas, cansadas, quase sem vida, como a do provável aluno morto que ainda perturbava-lhe a mente. Quando finalmente proferiu de forma cortante:
.– Porque esse “futuro”, meu amigo, já existe. E eu o vivencio todos os dias!
.Silêncio profundo na sala.
.“Tic-Tac”.
Sobre o autor:
Matheus Fernandes é estudante do curso de Letras – Português/Espanhol pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, na cidade de Bacabal, interior do Maranhão. Tem 22 anos de idade e já foi responsável pela liderança de dois projetos de extensão: Jovem Parlamentar Bacabalense (2018) e o projeto Letras em Cena (2019), tendo conseguido neste último o prêmio de melhor projeto cultural no evento “II Jornada Cultural” pela Universidade Estadual do Maranhão, São Luís – MA (2019). Atualmente é autor do conto “A Educação do Futuro”, capítulo constituinte da coletânea literária Os Melhores Contos de 2019, publicada pela Editora Inovar (2020).
Instagram: @fernandes_maatheus