Ler não é apenas decifrar palavras. Não é acumular páginas, nem marcar metas em aplicativos. A leitura acontece em camadas — e cada leitor atravessa essas camadas de um jeito próprio, às vezes sem conseguir explicar exatamente o que entendeu, mas sabendo que algo mudou.
Por isso, quando surge a pergunta “o que faz um bom leitor?”, dificilmente há consenso.
H. P. Lovecraft defendia uma leitura criteriosa.
Virginia Woolf dizia sentir pena de quem nunca leu Shakespeare.
Ana Maria Machado acredita na importância dos clássicos desde cedo.
Clarice Lispector afirmou que Grande Sertão: Veredas era uma das coisas mais lindas já escritas.
Cada leitor cria seus próprios critérios: por gênero, por autor, por tema, por afinidade — às vezes até pela capa. O encantamento não obedece a regras fixas.
Mas um escritor levou essa pergunta para a sala de aula e resolveu testá-la de forma direta.
A pergunta que Nabokov fazia a seus alunos
Em palestras ministradas em universidades inglesas, Vladimir Nabokov — autor de Lolita — propunha um exercício simples e provocador:
Selecione quatro respostas para a pergunta:
O que faz um leitor ser um bom leitor?
- O leitor deve pertencer a um clube do livro.
- O leitor deve identificar-se com o herói ou heroína.
- O leitor deve se concentrar no ângulo econômico-social.
- O leitor deve preferir histórias de ação e diálogo.
- O leitor deve ter visto o livro virar filme.
- O leitor deve ser um autor iniciante.
- O leitor deve ter imaginação.
- O leitor deve ter memória.
- O leitor deve ter um dicionário.
- O leitor deve ter algum sentido artístico.
A maioria dos alunos escolhia as alternativas 2, 3 e 4 — identificação, contexto social e ação.
Nabokov discordava frontalmente.
Para Nabokov, o bom leitor tem quatro qualidades
Segundo ele, um bom leitor é aquele que possui:
- imaginação
- memória
- um dicionário
- sentido artístico
Nada de identificação emocional imediata. Nada de leitura utilitária. Nada de reduzir o livro a mensagem, lição ou espelho social.
Para Nabokov, ler é um ato criativo, não um consumo passivo.
Ler não é identificar-se. É perceber
Nabokov rejeitava a ideia de que ler bem fosse “se ver” no personagem. Para ele, isso empobrece a experiência. A boa leitura exige atenção à forma, ao ritmo, às escolhas de linguagem — ao que o texto faz, não apenas ao que ele “fala”.
E então ele vai mais longe.
“Não se pode ler um livro. Só se pode reler.”
“Curiosamente, não se pode ler um livro: só se pode reler. Um bom leitor, um leitor ativo e criativo é um releitor.”
Para Nabokov, a primeira leitura é sempre incompleta. Estamos ocupados demais aprendendo o caminho: personagens, espaço, tempo, voz. É apenas na releitura que o livro se abre como obra de arte.
Ele compara o processo à observação de uma pintura: na releitura, o leitor já conhece o todo e pode finalmente enxergar os detalhes.
Ler, então, deixa de ser corrida e vira contemplação.
Aliás, eu uso a palavra leitor muito vagamente. Curiosamente, não se pode ler um livro: só se pode reler. Um bom leitor, um leitor importante, um leitor ativo e criativo é um releitor. E vou dizer por quê. Quando lemos um livro pela primeira vez, o próprio processo de mover os olhos da esquerda para a direita, linha após linha, página após página, esse trabalho físico sobre o livro, o próprio processo de aprendizagem em termos de espaço e tempo que o livro causa, está em nós como apreciação artística. Quando olhamos para uma pintura não temos de mover os olhos de uma maneira especial, mesmo se, como em um livro, a imagem contém elementos de profundidade e desenvolvimento. O elemento de tempo realmente não entra em um primeiro contato com a pintura. Ao ler um livro, temos de ter tempo para familiarizarmos com ele. Nós não temos nenhum órgão físico (como temos o olho em relação a uma pintura) que nos leva em toda a imagem e, em seguida, pode desfrutar de seus detalhes. Mas em uma segunda leitura, ou terceira, ou quarta, nós, em certo sentido, nos comportamos com um livro como fazemos com a pintura. No entanto, não vamos confundir o olho físico, uma obra monstruosa de evolução, com a mente, uma conquista ainda mais monstruosa. Um livro, não importa o que é, uma obra de ficção ou uma obra de ciência (a linha de fronteira entre os dois não é tão clara como geralmente acreditamos), pois para a mente, antes de tudo, um livro possui recursos de ficção. A mente, o cérebro, a parte superior da coluna que nos dá arrepios, é, ou deveria ser, o único instrumento utilizado em cima de um livro. (NABOVOK, Vladimir. Lectures on Literature, UK. Tradução livre)
A mente como instrumento de leitura
Outro ponto central de Nabokov é a ideia de que o principal instrumento da leitura é a mente, não a emoção imediata nem a identificação psicológica.
A leitura exige atenção, esforço, disponibilidade. Exige tempo. Exige silêncio interior. Por isso, para ele, tanto a ficção quanto a ciência possuem elementos ficcionais: ambas exigem imaginação para serem compreendidas.
Ler bem não é entender tudo.
É perceber melhor.
E você, que tipo de leitor está sendo?
Talvez a pergunta mais importante não seja o que faz um bom leitor, mas:
- Você relê?
- Você percebe a linguagem ou apenas a história?
- Você aceita o desconforto de não entender tudo de imediato?
Se Nabokov estivesse hoje diante de nós, provavelmente não perguntaria quantos livros lemos por ano — mas como lemos quando lemos de verdade.
Fonte:
NABOKOV, Vladimir. Lectures on Literature.
Conteúdo originalmente divulgado pelo site Brain Pickings.
FAQ – Perguntas frequentes
O que faz um bom leitor segundo Vladimir Nabokov?
Segundo Nabokov, um bom leitor deve ter imaginação, memória, um dicionário e senso artístico. Ele rejeitava a leitura baseada apenas em identificação emocional.
Ler muito significa ler bem?
Não necessariamente. Para Nabokov, a qualidade da leitura importa mais do que a quantidade. A releitura é fundamental.
Por que Nabokov valorizava a releitura?
Porque apenas na releitura o leitor consegue perceber a forma, os detalhes e as escolhas artísticas do texto.
Identificar-se com personagens torna a leitura melhor?
Para Nabokov, não. Ele acreditava que a identificação excessiva empobrece a experiência literária.
Todo leitor pode se tornar um bom leitor?
Sim, desde que desenvolva atenção, paciência e disposição para reler e observar a linguagem.


