Virginia Woolf leu Ulysses e não gostou nada do que encontrou…

atualizado em 23/12/2025

Ulysses, de James Joyce, é um dos romances mais discutidos, celebrados e temidos da literatura do século XX. Publicado em Paris, em 1922, o livro ganhou fama internacional por seu experimentalismo radical, pelo diálogo com a Odisseia, de Homero, e pelo uso extremo do fluxo de consciência. Técnica que também seria explorada por Virginia Woolf.

Mas o fato de partilharem o mesmo território modernista não significava concordância estética. Ao contrário. Os trechos abaixo, retirados dos diários de Virginia Woolf, revelam uma leitura marcada por incômodo, resistência e reflexão crítica.

Não se trata de fofoca literária, nem de rivalidade rasa. Trata-se de uma escritora pensando literatura enquanto lê outro grande escritor. E defendendo, ainda que indiretamente, sua própria ideia de forma, linguagem e ética estética.

Virginia Woolf observa Joyce antes do mito: método, técnica e desconfiança

15/11/1918

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[Mr. Eliot] admira imenso Mr. Joyce. Mostrou-nos uns três ou quatro poemas para lhe darmos uma vista de olhos – o fruto de dois anos de trabalho, visto que ele trabalha o dia inteiro num banco e, segundo o seu modo racional de pensar, acha que o trabalho regular faz bem às pessoas de constituição nervosa. Fiquei mais ou menos consciente de um seu sistema, muito intricado e altamente organizado, de crença poética; devido às suas cautelas, e ao seu cuidado excessivo na escolha da linguagem, não descobrimos muita coisa sobre essa crença. Acho que ele é um adepto das “frases vivas” e acredita que há uma diferença entre estas e as frases mortiças; acha que se deve escrever com um cuidado extremo, respeitar sintaxe e gramática; e, assim, fazer esta poesia nova florir dos estames da mais antiga poesia. [p. 132]

Interpretação

Aqui, Woolf ainda não está julgando Ulysses, mas observando o método de Joyce por intermédio de T. S. Eliot. Ela reconhece a organização extrema, o rigor técnico, o cuidado quase obsessivo com a linguagem. Há admiração, mas também distância. O que incomoda não é a disciplina — Woolf também a tinha —, mas a sensação de que o sistema precede a experiência. Já aparece aqui uma tensão fundamental: até que ponto o controle excessivo da forma não sufoca a vida interior que a literatura deveria revelar?

“O perigo do eu egoísta”: Woolf pensa sua própria escrita ao ler Joyce

26/01/1920

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O dia seguinte ao do meu aniversário (…) e sinto-me mais feliz hoje do que ontem porque esta tarde cheguei a uma ideia sobre uma forma nova para um romance. E se uma coisa se desenvolver a partir de outra – como em “An Unwriten Novel”, só que durante uma duzentas páginas em vez de dez – de dez – não dará isso a maleabilidade e a leveza que quero, não se aproximará mais, mantendo todavia a forma e a velocidade, e abarcando tudo, tudo? A minha dúvida é até que ponto poderá <abranger> abarcar o coração humano… Dominarei eu completamente o diálogo para o tecer ali? Porque imagino que a abordagem será completamente diferente, desta vez: sem andaimes; mal se vendo um tijolo; toda crepuscular, mas o coração, a paixão, o humor, tudo com o brilho o fogo na neblina. Depois vou encontrar espaço para tanta coisa, uma alegria, uma incongruência – um passo jovial a meu bel-prazer. Se domino suficientemente as coisas ou não – essa é que é a dúvida, mas imagina A marca na Parede, K.G. [Kew Gardens} e “An Unwriten Novel” dando-se as mãos e dançando unidos. Que unidade será é o que está ainda por descobrir: o tema é um vazio pra mim, mas vejo possibilidades infinitas na forma, que me ocorreu mais ou menos por acaso há duas semanas. Suponho que o perigo é este maldito eu egoísta; que em minha opinião é a ruína de Joyce e da [Dorothy] Richardson: serei assim tão flexível e rica que possa erguer um muro entre mim e o livro, sem que ele se torne limitativo e restritivo, como no caso do Joyce e da Richardson? A minha esperança é que já aprendi o bastante do meu ofício, de modo que posso apresentar toda a espécie de diversões.  [ p. 193]

Interpretação

Este trecho é central. Woolf está pensando sua própria obra à luz da leitura de Joyce. Quando critica o “eu egoísta”, não fala de vaidade pessoal, mas de um risco formal: o texto girar em torno de si mesmo, fechado em sua própria engenhosidade. Para Woolf, a grande questão é ética e estética: como escrever algo profundamente subjetivo sem aprisionar o leitor dentro da mente do autor?

Quando Woolf rejeita a grandiosidade: Joyce, ego e autoproclamação

20/09/1920

Segundo Joyce, Ulisses é a maior personagem da história. Joyce como homem é insignificante, usa lentes muito fortes, e parece-me um pouco com o [Bernard] Shaw, é maçador, sempre concentrado em si mesmo, e tem uma confiança inabalável de si próprio. [p. 224]

Interpretação

Aqui, Woolf mistura crítica literária e impressão pessoal — algo comum em seus diários. Mas o alvo não é apenas Joyce, e sim a autoproclamação de grandeza. Woolf desconfiava profundamente da literatura que se anuncia como monumental. Sua escrita sempre buscou o contrário: o quase invisível, o instante mínimo, o que vibra sem precisar declarar grandeza.

Insegurança criativa: Woolf teme estar atrás de Joyce

26/09/1920

Mas acho que me importei mais do que deixei transparecer; porque, não sei o como, o Jacob parou, e ainda por cima no meio daquela festa que me agradava tanto. (…) mas eu pensei que o que estou a fazer está provavelmente a ser mais bem feito por Mr. Joyce. [p. 224]

Interpretação

Este é um dos trechos mais humanos do diário. Woolf admite insegurança. Joyce surge como uma sombra criativa, alguém que parece estar avançando mais rápido, mais longe. Mas essa comparação não gera submissão — gera reação. Woolf não tenta imitá-lo. Ela se pergunta como seguir por outro caminho, sem trair sua intuição literária.

O encanto que vira cansaço: quando Ulysses começa a irritar Woolf

16/08/1922

Devia estar a ler Ulisses e a forjar os meus argumentos pró e contra. Até agora li duzentas páginas – não chega a um terço; e os primeiros dois ou três capítulos divertiram-me, estimularam-me, encantaram-me, interessaram-me – até ao fim da cena do cemitério; e depois desconcertou-me, maçou-me, irritou-me e desiludiu-me, como se ele fosse um estudante enjoadiço a coçar as borbulhas. [p. 282]

Interpretação

A metáfora é dura — e reveladora. Woolf reconhece o brilho inicial do romance, mas se cansa rapidamente do que considera excesso, insistência, barulho. O problema não é a ousadia, mas o que ela vê como falta de delicadeza. Para Woolf, literatura também é ritmo, silêncio, contenção. E Ulysses, aqui, falha nesse equilíbrio.

“Cada vez gosto menos de Ulysses”: a rejeição se consolida

26/08/1922

Cada vez gosto menos de Ulisses – isto é, cada vez o acho menos importante; e nem sequer me preocupei conscientemente em lhe perceber os sentidos. Graças a Deus que não tenho de escrever obre o livro. [p.286]

Interpretação

Este comentário quase irônico mostra um cansaço definitivo. Woolf percebe que o livro não a convida à releitura amorosa, mas à resistência. É uma rejeição estética, não um julgamento moral. Ela simplesmente não encontra ali o tipo de experiência literária que busca — e não sente obrigação alguma de gostar.

“Fumo sem fogo”: a crítica mais dura de Virginia Woolf a Ulysses

06/09/1922

Acabei o Ulisses, e acho que é fumo sem fogo. Gênio tem, acho eu; mas não é de primeira água. O livro é difuso. É intragável. É pretensioso. É mal-educado, não só no sentido óbvio, mas também no sentido literário. Ou seja, um escritor de primeira ordem tem muito respeito pela escrita para se permitir usar truques; pregar sustos; fazer acrobacias. Lembra-me o tempo todo um aluno imaturo de um colégio interno, por exemplo o Henry Lamb, cheio de inteligência e potencialidades, mas tão preocupado com a impressão que pode causar e tão egoísta que perde a cabeça, se torna extravagante, amaneirado, barulhento e irrequieto, faz com que as pessoas bondosas tenham pena dele, e as pessoas severas se aborreçam; e fica-se com a esperança de que isso lhe passe com a idade; mas como o Joyce tem quarenta anos parece pouco provável. Não li com atenção; e só li uma vez; e é muito obscuro; por isso sem dúvida que lhe atamanquei as virtudes mais do que seria legítimo. Sinto-me bombardeada e salpicada por miríades de balas minúsculas, mas não se recebe uma ferida mortal na cara – como Tolstoi; por exemplo; mas é inteiramente absurdo compará-lo a Tolstoi. [p. 289]

Interpretação

Este é o julgamento mais severo — e mais elaborado. Quando Woolf fala em “má educação literária”, está falando de respeito à escrita. Para ela, o escritor não deveria recorrer a truques ou acrobacias para provar genialidade. Sua comparação com Leo Tolstoy é decisiva: Tolstói fere profundamente; Joyce, segundo Woolf, apenas bombardeia.

Primeiras impressões importam: por que Woolf não voltou atrás

06/09/1922

Depois de ter escrito isso, o Leornad pôs-me nas mãos uma crítica muito inteligente do Ulisses, no Nation de Nova Iorque; que, pela primeira vez, analisa o sentido, e que realmente o torna muito mais impressivo do que eu tinha pensado. Mesmo assim, acho que as primeiras impressões têm valor e alguma verdade duradoura; de modo que não cancelo as minhas. Tenho de ler alguns capítulos outra vez. Provavelmente a beleza final da escrita não é nunca sentida pelos contemporâneos; mas acho que deviam ficar aturdidos; e eu não fiquei. Mas, por outro lado, eu tinha-me assanhado de propósito; mas, por outro lado, estava demasiado estimulada pelos louvores de Tom (…). [p. 289/290]

Interpretação

Woolf não fecha a questão com arrogância. Ela admite limites, reconhece que pode ter sido injusta, aceita outras leituras. Mas mantém algo fundamental: a validade da experiência primeira. Para ela, literatura não é apenas o que se entende depois — é o que se sente no encontro inicial.

O que essa leitura nos ensina hoje

Saber que Virginia Woolf não gostou de Ulysses não diminui Joyce. Nem diminui Woolf. Ao contrário: humaniza os clássicos e mostra que a literatura avança por fricção, discordância e diferença de projetos estéticos.

Não há um único modernismo.
Há choques.
E é deles que nasce a grande literatura.

Referência: Virginia Woolf – Diário. Primeiro Volume, Bertrand de Portugual, tradução de Maria José Jorge

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