No livro O Coração Amarelo, do poeta chileno Pablo Neruda (1904 – 1973), é possível perceber toda a dimensão da poesia, como um processo artístico, pois a marca despojada, alegre, política e excêntrica do escritor fica evidente nas vinte e uma poesias presentes no livro.
É fácil compreender a poesia, difícil é explicá-la. Os versos, além de dizerem algo, são como uma bela música, a sonoridade de cada palavra transpõe o significado da própria poesia, que soma, multiplica e transforma o leitor.
O poeta, cada vez mais raro em nosso mundo, é como um cristal bruto, que derrama palavras, que podem contar uma história, uma vida, um sentimento, uma razão, uma descoberta, um mundo.
A poesia que dá título ao livro chama-se “Outro” (p. 11), É curta, rápida e linda. Causou em mim a curiosidade em ter um coração amarelo. O que é um coração amarelo? Talvez seja difícil explicar, porém há a certeza que, um dia, essa sensação já fez parte da vida:
De tanto andar uma região
que não figura nos livros
acostumei-me às terras tenazes
em que ninguém me perguntava
se me agradavam as alfaces
ou se preferia a menta
que devoram os elefantes.
E de tanto não responder
tenho o coração amarelo.
Outra poesia que me deixou pensativa foi “O herói”, que conta a história de um homem que vivia nu e, ao final de sua vida, “se cobriu com escamas negras”, ficando impossibilitado de ler. Os últimos versos, contradizem o início da poesia, que traz algo esperançoso pela vida simples do homem nu, que não se adequava às roupas: “fica provado nesta história / que a boa-fé não resiste / às investidas do inverno.” (p. 19):
Depois daquela nudez
com quarenta anos nu
da cabeça aos pés
se cobriu com escamas negras
e os cabelos lhe cobriram
de tal maneira os olhos
que nunca mais pôde ler,
nem do dia os jornais.
Então, “O Herói” se torna um poema complexo, assim como “Uma situação insustentável” (p. 21), que também conta uma história, porém, relaciona vida e morte de um jeito divertido e melancólico, ao apresentar uma família que vive olhando para o passado, para os mortos que um dia fizeram parte da casa onde moram. Por fim, todos se tornam o passado, a própria morte:
Falavam tanto dos mortos
perto do fogo todo dia,
do primo Carlos, de Felipe,
de Carlota, monja defunta,
de Candelario sepultado,
enfim, não terminavam nunca
de recordar o que não vivia.
Pablo Neruda também é conhecido como um poeta do amor. Em O coração Amarelo, apesar do foco ser outro, é impossível não ver a beleza dos primeiros versos do poema “Integrações” (p. 47):
Depois de tudo te amarei
Como se fosse sempre antes
Como se de tanto esperar
Sem que te visses nem chegasses
Estivesses eternamente
Respirando perto de mim.
“Rechaça os relâmpagos” (p. 55) se tornou um dos meus preferidos, pois há uma forte relação dos perigos da natureza com a vida. Abaixo, a segunda estrofe:
Me ensinou o raio a ser tranquilo,
a não perder luz no céu,
a procurar dentro de mim
as galerias da terra,
a cavar no solo duro
até encontrar na dureza
o mesmo lugar que buscava,
agonizado, o meteoro.
Um tema interessante e curioso que aparece nas entrelinhas de outros poemas, porém, com mais clareza em “Enigma para intranquilos” (p. 69) e “O tempo que não se perdeu”, é o próprio tempo. No primeiro ele brinca de imaginar um futuro capaz de controlar o tempo, acelerar as horas, chegar ao nascimento e a morte, como “um motor roubado ao infinito”. No outro, Pablo Neruda reforça o tempo da vida, às coisas que perdemos por distração ou medo. A segunda estrofe diz:
Perder até perder a vida
é viver a vida e a morte
não são coisas passageiras
mas sim constantes, evidentes,
a continuidade do vazio,
o silêncio em que cai tudo
e por fim nós mesmos caímos.
Ao terminar a leitura, entre tantas outras belas poesias, fica a sensação de unidade. Ler um livro de poesia é muito diferente de ler apenas uma poesia, como também é muito diferente à experiência de ler a prosa, porém, quando a poesia é boa, preenche os espaços vazios do papel, preenche a vida, preenche o tempo, o humor, o amor e todo o mistério que provoca.