Este ano estou tentando ampliar um pouco mais minha gama de leitura. Não me apegar tanto aos meus gêneros e temáticas favoritas até mesmo para ampliar um pouco mais os horizontes literários. Se fechar à poucas vertentes delimita o conhecimento. Meses atrás pedi às pessoas da família que separassem livros que não quisessem mais para que eu pudesse sortear aos meus alunos e, embora eu lecione inglês, vi um acesso à literatura bem precário na escola afastada do município. Recebi então uma caixa com diversos livros. Muitos deles vindos de escolas estaduais, distribuídos pelo governo e que, quem me deu, confessou que na escola embora esses livros sejam dados, ninguém os lê. Separei então alguns para ler antes de repassar e foi assim que Capitães da Areia (Companhia das Letras, 2008), me fez companhia nos últimos dois meses.
A obra do escritor baiano Jorge Amado, narra o cotidiano de um grupo de garotos de rua que cometem os mais diversos delitos para sobreviver pelas vielas da Bahia durante o dia e vivem em um pequeno trapiche de madeira abandonado à beira mar, dividindo comida, roupas, histórias e anseios por dias melhores.
Na história os jornais de Salvador a todo momento noticiam sobre o grupo, intitulado “Capitães da Areia”, que vêm aterrorizando a sociedade de Salvador com seus furtos e golpes liderado por Pedro Bala, um garoto destemido e respeitado pelos demais.
Toda a narrativa decorre sobre a particularidade de cada um dos garotos. Desde “Gato”, garoto belo e malandro que passava a maioria de suas noites na casa da prostituta Dalva; “Sem-Pernas”, garoto com deficiência na perna que tira proveito disso para aplicar golpes ao ser acolhido por pessoas com boa vontade em suas residências. “Professor”, o único letrado do grupo, que lia histórias sob a luz de velas para os demais ao anoitecer; “Volta Seca”, afilhado de Lampião (sim, o próprio), que sonha em um dia se tornar parte de seu grupo e se vingar dos policiais dos quais já apanhou na vida; entre outros.
Jorge Amado narra em uma perspectiva que faz o leitor de certa forma entender a natureza dos crimes cometidos pelos garotos, que na verdade faziam aquilo por instinto, em retribuição à forma com que a sociedade os tratava, e porque não tinham uma outra forma de sobreviver, ou quem olhasse por eles. Havia um padre, José Pedro, que até tentou ajudar os garotos e tirá-los de uma vida cheia de pecados e imoralidades. Conseguiu o respeito deles, mas com isso obteve diversos problemas com seus superiores na igreja. Ao menos conseguiu com que “Pirulito”, jovem devoto do grupo, se tornasse um seguidor de Cristo e almejasse um dia se tornar padre, assim como o homem ao qual passou a admirar (José Pedro).
Uma mudança significativa na rotina dos Capitães só foi ocorrer com a chegada de Dora, uma garotinha aceita pelo grupo e que acaba sendo vista pelo grupo como um pedaço que faltava para cada um ali. Sendo na particularidade de cada um ali, uma certa forma de mãe, irmã, amiga e amante (no caso de Pedro Bala). Sua passagem pela história acaba por ser impactante no destino do grupo e no desfecho da narrativa.
“(…) Ela voltou, remenda as camisas do Gato. Uma vontade de deitar no colo de Dora e deixar que ela cante para ele dormir, como quando era pequenininho. Se recorda que ainda é uma criança. Mas só na idade, porque no mais é igual a um homem, furtando para viver, dormindo todas as noites com uma mulher da vida, tomando dinheiro dela. Mas nesta noite é totalmente criança, esquece Dalva, suas mãos que o arranham, lábios que prendem os seus beijos longos, sexo que o absorve. Esquece sua vida de pequeno batedor de carteiras, de dono de um baralho marcado, jogador desonesto. Esquece tudo, é apenas um menino de catorze anos com uma mãezinha que remenda suas camisas. Vontade que ela cante pra ele dormir.” (pág 180)
Ler Capitães da Areia não foi uma experiência que fluiu com naturalidade. No início a leitura caminhou bem, até uma passagem onde ocorre um estupro cometido por Pedro Bala em uma “negrinha” como é citado no livro. Aliás a sexualidade é abordada com frequência; entre os garotos do trapiche, com mulheres mais velhas fora dele, e o que eles chamam de “tombar” ou “derrubar” meninas na areia para abusar sexualmente delas. E foi aí que um certo sentimento de repúdio à narrativa me fez pausar a leitura por alguns dias, ou semanas. Fiquei pensativo sobre o que é “cultuar” algo ao publicar algo assim, e o que é o relato cru de algo que realmente acontecia. É algo a ser discutido. Concidentemente vivemos um momento onde a temática do estupro está repercutindo em todos os locais devido aos recentes terríveis fatos ocorridos no país, e que, fato também é, que este também está presente em nossa literatura, e cabe um futuro debate e análise. Afinal, nossa literatura está aí, refletindo nossa sociedade há séculos.
Passado o desconforto, voltei a leitura e fui me aproximando mais dos personagens. Cada um, mesmo com seus pecados e defeitos, cativam o leitor e causam um sentimento de compaixão por suas desgraças. O que Jorge Amado fez ao meu ver, foi um retrato de certa forma dolorido e atemporal, da realidade de garotos de rua. Décadas depois, devido ao abandono, descaso da sociedade e desnível social, cada cidade deste país carrega incontáveis grupos de garotos que em muito devem se assemelhar aos “Capitães da Areia”, vivendo como podem, obedecendo apenas à lei da sobrevivência.