O anjo do lar é o nome de um poema escrito por Coventry Patmore, um poeta inglês do século XIX, sobre o ideal de um casamento feliz, em que a mulher é colocada em um papel doméstico e que, ao seguir as suas ideias – engessadas e categóricas, traz a imagem da mulher perfeita, que torna o homem feliz.
Virginia Woolf e o anjo do lar
Virginia Woolf (1882-1941), escritora e crítica literária, em seu artigo Profissões para Mulheres, fruto de um discurso realizado em 1931 para um grupo de mulheres trabalhadoras, comenta sobre o poema de Patmore e da necessidade de matar esse tal anjo do lar. No artigo ela se coloca como uma mulher que apenas sabe do seu ofício, que é a literatura, porém, acredita que todas as mulheres possuem esse tal anjo dentro de si e que, para uma vida saudável é preciso combatê-lo.
Para Virginia Woolf, o anjo do lar prejudica o seu trabalho porque, socialmente, ela está condicionada a agradar os homens. Ela precisa ser muito educada, elegante, gentil. As suas opiniões devem caminhar para a neutralidade e, de preferência, que sejam agradáveis aos homens. O anjo do lar propõe tudo isso – a mulher neutralizando-se para satisfazer o homem, para deixá-lo pleno e confortável na sua liberdade. Assim, quando Virginia Woolf começou a escrever suas resenhas e artigos – para publicações em revistas inglesas, ela confrontou o seu próprio anjo do lar. Ela queria dar a sua opinião, ela sabia muito bem o que estava fazendo, porém, o anjo do lar, fazia-a escrever de um jeito mais calmo, afável, amoroso, para não bater de frente com os homens.
Vocês, que são de uma geração mais jovem e mais feliz, talvez não tenham ouvido falar dela – talvez não saibam o que quero dizer com o ‘Anjo do Lar’. Vou tentar resumir. Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. (…) Em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo – nem preciso dizer – ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza – enrubescer era seu grande encanto. Naqueles dias (…) toda casa tinha seu Anjo. E, quando fui escrever, topei com ela já nas primeiras palavras. Suas asas fizeram sombra na página; ouvi o farfalhar de suas saias no quarto. Quer dizer, na hora em que peguei a caneta para resenhar aquele romance de um homem famoso, ela logo apareceu atrás de mim e sussurrou: ‘Querida, você é uma moça. Está escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja afável; seja meiga; lisonjeie; engane; use todas as artes e manhas de nosso sexo. Nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião própria. E principalmente seja pura.
Virginia Woolf. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. L&PM. Tradução de Denise Bottmann
Em todas as profissões e na própria vida social das mulheres, os obstáculos estão presentes. Portanto, o Anjo do Lar não é algo exclusivo da mulher escritora, é algo presente na vida de qualquer mulher, independente de seu grau de instrução, sua profissão, sua raça, e até mesmo de sua consciência sobre esse tal anjo. Cada uma, dentro de seu próprio universo vai se deparar em algum momento com esse fantasma que precisa ser eliminado porque uma vida cheia de amarras não é uma vida feliz. Virginia Woolf no mesmo artigo, afirma “é mais difícil matar um fantasma do que uma realidade.“
Leia: Profissões para mulheres e outros artigos feministas (Virginia Woolf)
A Madonna também matou o anjo do lar
Madonna, que dispensa apresentações, fez um discurso na semana passada (09/12) após receber o prêmio de “Mulher do Ano” pela revista americana Billboard, sobre o que é matar esses fantasmas, sendo um mulher da área da música. Se ela conhece o artigo de Virginia Woolf, não sabemos, porém, a sua fala é iniciada de um jeito muito parecido com Woolf. De um lado, Virginia informa que pode apenas falar sobre sua experiência como uma mulher escritora. Do outro, Madonna começa o seu discurso informando: “o que eu posso dizer sendo uma mulher da música? o que eu posso dizer sendo mulher?”
Em seguida, ela dá diversos exemplos sobre a postura da mulher na música, ela comenta sobre os abusos que sofreu, das tantas vezes que o seu talento foi posto em prova por ela ser uma mulher fora dos padrões de um anjo do lar. Abaixo eu selecionei os trechos de seu discurso – forte, decidido e inspirador, que revelam os tantos obstáculos que a cantora teve de enfrentar e, assim como Virginia Woolf, ela dá exemplos do padrão de comportamento da mulher que é aceito na sociedade.
Eu me inspirei, é claro, em Debbie Harry e Chrissie Hynde e Aretha Franklin, mas meu muso verdadeiro era David Bowie. Ele personificava o espírito masculino e feminino e isso me agradava. Ele me fez pensar que não havia regras. Mas eu estava errada. Não há regras se você é um garoto. Há regras se você é uma garota. Se você é uma garota, você tem que jogar o jogo. Você tem permissão para ser bonita, fofa e sexy. Mas não pareça muito esperta. Não aja como você tivesse uma opinião que vá contra o status quo. Você pode ser objetificada pelos homens e pode se vestir como uma prostituta, mas não assuma e se orgulhe da vadia em você. E não, eu repito, não compartilhe suas próprias fantasias sexuais com o mundo. Seja o que homens querem que você seja, e mais importante, seja alguém com quem as mulheres se sintam confortáveis por você estar perto de outros homens. E por fim, não envelheça. Porque envelhecer é um pecado. Você vai ser criticada e humilhada e definitivamente não tocará nas rádios.
(…) Eu me lembro de ser a manchete de cada jornal e revista. Tudo que lia sobre mim era ruim. Eu era chamada de vagabunda e de bruxa. Uma das manchetes me comparava ao demônio. Eu disse ‘Espera aí, o Prince não está correndo por aí usando meia-calça, salto alto, batom e mostrando a bunda?’ Sim, ele estava. Mas ele era um homem. Essa foi a primeira vez que eu realmente entendi que mulheres não têm a mesma liberdade dos homens.
(…) Mulheres têm sido oprimidas por tanto tempo que elas acreditam no que os homens falam sobre elas. Elas acreditam que elas precisam apoiar um homem. E há alguns homens bons e dignos de serem apoiados, mas não por serem homens, mas porque eles valem a pena. Como mulheres, nós temos que começar a apreciar nosso próprio mérito. Procurem mulheres fortes para que sejam amigas, para que sejam aliadas, para aprender com elas, para as inspirem, apoiem e instruam.
O anjo do lar da mulher comum
Chega até a ser fácil usar dois exemplos tão fortes para pensar sobre esses fantasmas que cercam o que é ser mulher. Simone de Beauvoir nos informa que “não se nasce mulher, torna-se”, porque a mulher acaba sendo um conjunto de coisas que ela recebe ao longo de sua vida, mas nem sempre ela tem a escolha sobre essas coisas que recebe. Um exemplo simples é que as meninas ainda vestem rosa, os meninos azul. As meninas ainda são condicionadas a brincar de bonecas e os meninos de carrinhos. Quando essas posições se invertem, ainda há a gargalhada, um olhar de que assim, diferente, não é bom, não é normal. Portanto, ainda dentro desse universo menina x menino, há muitas coisas a serem conquistas e principalmente revisadas.
Com tragetórias tão diferentes, Madonna e Virginia Woolf conseguiram olhar para suas próprias amarras e escapar delas, mas quem pode dizer, Madonna que ainda vive, que não há outros anjos para serem destruídos? Assim, as duas artistas – e tantas outras, tornam-se figuras importantes dentro do universo da mulher porque provam que é possível mudar e, a eterna rainha do pop que arrasta multidões, pode trazer esses questionamentos às pessoas que, se não fosse por ela, jamais pensariam sobre o assunto.
Mas vamos pensar naquela mulher que mora numa favela em algum canto do Brasil, que possui cinco filhos, alguns não conseguem chegar à escola e têm dias que não há água, tampouco farinha ou feijão. Essa mulher – tão comum, é a que mais precisa matar o seu anjo do lar, um anjo que não tem o brilho da liberdade de uma profissão de estrela. Mas essa mulher, mata também os seus anjos do lar, os fantasmas que devem assombrá-las porque, talvez, o marido chegue em casa bêbado, sem dinheiro e a estupre. Ou que ele a abandone por um motivo que ela mesma nunca entenderá. Ou talvez, ela queira abandoná-lo, mas não tem para onde ir. Talvez seus filhos não consigam terminar o ensino fundamental e sigam o caminho do crime. Talvez, o seu universo não traga a opção de ter a consciência sobre matar o anjo do lar, mas ela está lá, lutando da sua maneira e isso é o que há de mais bonito, se não fosse também tão trágico.
Quando Virginia Woolf conversou com as mulheres trabalhadoras, muitas ali estavam ganhando pela primeira vez a oportunidade de ter um trabalho que, posteriormente, traz algum dinheiro, que colabora para algum tipo de liberdade. São mulheres que não saberemos de suas histórias, mas que um dia poderão matar o anjo do lar, sem aparecer na televisão, sem escrever livros, sem cantar músicas; mas vivendo a vida e tornando-se um pouco mais livre, todos os dias.
O anjo do lar diz que você não pode
O anjo do lar diz que você não pode ser forte, mas se for forte, não deve reconhecer essa força, porque é bonito a ignorância. O anjo do lar informa que você não pode falar alto, porque isso não é coisa de mulher. Ele diz que você precisa de um homem ao seu lado para ser respeitada, mesmo que esse homem não a respeite. O anjo do lar informa que você não pode fazer certas coisas simplesmente porque é mulher. Ele até diz que você é bonita, desde que a sua beleza demonstre também a pureza que as religiões pregam. Ele diz que, se você sabe cozinhar muito bem, pode casar, mas não pode ser chef de cozinha de um grande restaurante. O anjo do lar está aí dentro de você quando o seu maior desejo é ser igual à moça da capa da revista e quando você não se sente confortável se estiver sem maquiagem. O anjo do lar pode ainda ser mais cruel, ele pode fazer com que as outras pessoas imaginem que o seu cargo, conquistado com tanto trabalho e estudo, pode ser fruto de uma saidinha com o chefe. Ele também diz que você pode beber, desde que pouco e numa taça sofisticada. Ele te quer calada, servindo e realizando os ideias dos outros, não o seu. O anjo do lar não pergunta o que você quer, ele impõe até o que você pensa desejar e faz você mentir.
Quando Virginia Woolf matou o seu anjo do lar, ela fez referência a necessidade de escrever resenhas sem se preocupar em agradar o autor de um livro famoso. Mas de repente, lá estava o anjo em seu ouvido dizendo que ela precisava ser agradável, pois o seu charme seria suficiente porém, com o seu lugar – como uma mulher que já tinha uma profissão e dinheiro, ela percebeu que isso não bastaria, pois se ela não matasse o anjo, seria o anjo a matá-la.
Merecemos e podemos
Depois que o anjo foi morto, o que sobrou foi apenas uma mulher jovem em seu quarto, com a caneta na mão e pronta para escrever. E mais nada. É essa liberdade, os direitos iguais, a nossa grande conquista. Assim damos nomes às nossas prisões para quando conseguirmos sair delas não é para aprisionar o outro, é apenas para viver igual. Merecemos e podemos.
Madonna, que por tantas vezes é chamada de vagabunda, deprava e velha, percebeu a diferença na relação da mídia com homens e mulher durante a sua carreira e neste ponto pode ter nascido o seu feminismo, a sua luta por direitos iguais. O seu universo musical, sexy e transgressor, acabou tornou-se muito além da luta das mulheres, pois a empatia que a sua imagem provoca em outras causas sociais levanta a bandeira das possibilidades. Merecemos e podemos.
Respostas de 4
Parabéns! Texto maravilhoso.
Muito obrigada, Marcelo! 🙂
Parabéns pelo texto, Francine!
Gratidão pela partilha..??
Obrigada, Ludmila!
Apareça mais!