No livro Se um viajante numa noite de inverno, do italiano Italo Calvino (1923 – 1985), o personagem principal é você, o leitor comum.
“O momento mais importante para mim é aquele que precede a leitura. Às vezes é o título que basta para acender em mim o desejo de um livro que talvez não exista. Outras vezes é o ‘incipit’ de um livro, suas primeiras frases… Em suma, se a vocês basta pouco para pôr em movimento a imaginação, a mim basta menos ainda: apenas a promessa da leitura.” (p. 223)
No artigo “O Leitor Comum“, Virginia Woolf explica a importância do leitor comum, que lê apenas pelo prazer da leitura, sem se preocupar com aspectos técnicos da literatura ou da linguagem. Esse leitor, muitas vezes ignorado no universo literário, é extremamente importante, pois lê “para seu próprio prazer, mais do que para repartir conhecimento ou corrigir opiniões alheias”.
É claro que há outros aspectos importantes dentro da literatura, como o crítico literário, a editora, o autor e o próprio livro. O livro sempre se dirige a ele, propositalmente ou não, e ele é quem mais acredita na história que está sendo contada. Saber de sua importância traz um resultado. Assim, no livro Se um viajante numa noite de inverno, do italiano Italo Calvino (1923 – 1985), o personagem principal é você, o leitor comum.
Sobre quando “o leitor entra dentro do livro”
Se um Viajante numa Noite de Inverno’, escrito em 1979, é o décimo livro do autor. Logo após seu lançamento, recebeu grandes elogios da crítica, pois o romance vai muito além do esperado. O livro contém muitas histórias dentro de outras histórias e personagens curiosos, levando a expressão ‘quando o leitor entra dentro do livro’ para um lugar conhecido, mas sempre original: a metaliteratura.
A metaliteratura é um conceito que permite pensar sobre a literatura com a própria literatura. No livro, Calvino oferece para o leitor diversas histórias que representam os tantos gêneros literários, como o policial, o romântico, o sensual, o humor. Está tudo lá em 12 capítulos, que revelam a busca de dois personagens – o leitor e a leitura, sobre onde está o restante do livro “Se um viajante numa noite de inverno” que, após lerem a primeira parte, descobrem que o capítulo seguinte é a repetição do primeiro, por conta de um erro na edição. E assim, a metaliteratura construída pelo autor acaba envolvendo outros personagens, que também fazem parte do universo literário: o tradutor, o editor, o crítico literário, entre outros.
A carta de Calvino
No apêndice do livro encontramos uma carta que Calvino escreveu para o crítico literário Angelo Gluguielmi, como resposta a um artigo que ele publicou sobre o livro. É um texto importante para entender melhor a obra, sem ser mais um leitor comum, mas aquele que aprende um pouco mais de literatura com o próprio autor. Entre as tantas questões levantadas na carta, algumas merecem um olhar mais atento:
“Se coloquei Leitor e Leitora no centro do livro, foi porque sabia o que estava fazendo. Não esqueço nem por um minutinho (dado que vivo de direitos autorais) que o leitor é o comprador e que o livro é um objeto que se vende no mercado. Quem pensa que pode prescindir do aspecto econômico da existência de tudo o que ele comporta não teve jamais o meu respeito.
Em resumo, se você me chama de sedutor, isso passa; de adulador, também passa; de feirante, até isso passa; mas, se me chama de inconsciente, aí me sinto ofendido! Se no Viajante eu quis aprensetar (e alegorizar) o envolvimento do leitor (do leitor comum) num livro que nunca é o que ele espera, apenas explicitei aquela que foi minha intenção consciente e constante em todos os livros anteriores. Aqui se abriria um discurso de sociologia da leitura (ou melhor, de política da leitura) que nos afastaria da discussão sobre a essência do livro em pauta.”
Essas palavras de Calvino para o crítico literário, podem ser entendidas por um livro de Arthur Schopenhauer, que define os 3 tipos de autores: aquele que escreve sem pensar, os que pensam enquanto escrevem e os que pensam antes de se pôr para escrever. Italo Calvino é do terceiro tipo, que sabe o que está fazendo até o fim e não decepciona.
Um romance sobre o leitor
No início da leitura, o leitor será surpreendido. Durante o processo de descoberta do livro, tanto pelo leitor quanto pelos personagens, pode haver uma sensação de confusão, como se a história não tivesse pé nem cabeça. No entanto, a linguagem do autor é deliciosa – simples e bonita – tornando impossível parar de ler, mesmo com as interrupções propositais das tantas histórias dentro da história. E o final o deixará tão perplexo que será inevitável o clichê: “por que eu não li esse livro antes”?
Mas é muito além, Calvino construiu um romance sobre o leitor, sobre o que torna um livro algo especial e que vale a pena correr atrás, brigar com o livreiro, pesquisar o tradutor, investigar a alma do livro como se aquilo fosse essencial para a vida. Por fim, o leitor pode trilhar dois caminhos, aquele que vai trazer uma resposta simples ou outro que vai tirá-lo da posição do leitor comum. Qualquer um dos caminhos escolhidos será importante, porque de qualquer maneira o livro cumpre a sua função, que não é apenas entreter, mas refletir sobre os tantos livros que já leu e a sua própria postura dentro da literatura.
Leitura complementar:
Artigo no site da UNICAMP: Que história espera seu fim lá embaixo?
Resenha: O visconde partido ao meio (Italo Calvino): sobre nossas incompletudes
Uma resposta
Excelente artigo e estou e acordo com o autor.