Como escreveu Fernanda Young no prefácio de Viva La Vida Tosca, de João Gordo (Dark Side Books, 2016), “João Francisco Berdan, com este nome elegante, poderia passar como um intelectual, um médico – Dr. João F. Berdan, cardiologista”, ou “Chico Berdan”, artista consagrado da MPB. Mas como ela resume, “o nome não aguentaria a vida incomum que ele teve”. Trata-se então da bio de João Gordo. Para alguns líder da banda punk/hardcore Ratos de Porão, para outros, apresentador dos programas mais bizarros e divertidos da MTV na década de 90. No meu caso, os dois.
Narrado em primeira pessoa, o livro segue a linha do que foi a biografia do Ozzy Osbourne (Eu Sou Ozzy, 2009). Engraçada e com vocabulário que te remete aos trejeitos do autor, como se você estivesse ouvindo a história narrada pelo próprio no instante da leitura, passando pela infância na Vila Gustavo em São Paulo, por seu relacionamento tortuoso com seu pai militar, de quem levou surras horrendas e com quem teve um relacionamento distante durante quase toda a vida, o Ratos de Porão e a MTV.
Entre idas e vindas da família entre São Paulo e Interior (Indaiatuba), João, já adolescente e com a vida entortada pelo som punk (como ele mesmo diz), se faz presente no olho do furacão. Está envolvido diretamente com o nascimento do movimento em São Paulo nos primeiros anos da década de 80 quando os punks se encontravam no largo São bento e as primeiras bandas surgiam.
“Eu vivia todo rasgado, vestido de punk. Nessa época, no fim de 1982, eu tinha quase dezenove anos e comecei a ouvir hardcore, só coisa agressiva, tipo Exploited, Discharge e GBH. Lembro que ouvi Why?, do Discharge, e achei a coisa mais violenta do mundo. Comecei a curtir também o hardcore finlandês de Riistetyt, Kaaos, Rattus e Terveet Kädet, e o hardcore americano. Em 1981, eu já tinha ouvido o disco Group Sex, do Circle Jerks, e fiquei louco – “Red Tape”, que música era aquela? Um dia meu amigo Renato Gordinho disse: “Vamos na casa de um brother que ele recebeu um disco aí”. Era o primeiro do Dead Kennedys, Fresh Fruits For Rotting Vegetables. Aquilo deu um nó na minha cabeça. Era avançado demais pra época, todo quebrado, parecia um disco de surf music do inferno. Pirei.” (pág. 74)
João entrou pro Ratos em 1983 após quase ter parado em outras bandas importantes da cena como o Cólera e o Psykóze. Com a sua chegada a banda se tornou sonoramente mais agressiva (segundo ele, muito do que ele ouvia do hardcore europeu como Kaaos, Bastards, Discharge, Disorder, entre outras, passou a soar nas novas composições da banda). No final do mesmo ano, com instrumentos emprestados, gravaram o em seis horas o primeiro disco de uma banda hardcore da América do Sul, “Crussificados Pelo Sistema”, que saiu em março de 1984 e é até hoje considerado um dos principais discos do gênero no mundo.
A banda engrena entre trocas constantes de integrantes, gravações de discos e turnês. A primeira passagem pela Europa vagando de trem entre a Alemanha e outros países rendem histórias engraçadíssimas que já valem o livro. Aos poucos o Ratos vai adquirindo o respeito e amizade de bandas importantes no meio do rock. Inclusive a amizade entre João e Dave Grohl (hoje líder dos Foo Fighters), antes mesmo deste se tornar baterista do Nirvana, rendeu episódios hilários na passagem da banda pelo Brasil em 1993 para o festival de música Hollywood Rock. João se acha responsável até hoje pelo péssimo desempenho do Nirvana na apresentação no estádio do Morumbi, pois segundo ele, o Nirvana não sabia que o festival era organizado por uma marca de cigarros e falou muito mal sobre o gerenciamento do evento, o que deixou a banda “puta da vida” antes de subir ao palco. Resultado? O show é considerado até hoje o pior da história da banda.
A emoção ao falar dos Ramones
João Gordo nunca economizou em emoção ao falar dos Ramones. Sempre foi assim. Me lembro quando ainda criança assistia aos seus programas na MTV e ele cravou uma frase que carrego comigo até hoje “Quem não gosta de Ramones, bom sujeito não é”. Ele sabe o que diz. Conta uma passagem que aconteceu após abrir três shows para os Ramones e ter sido chamado por eles para cantar “Comando” no Dama Xoc, em São Paulo:
“Nesse show vi uma coisa surreal: os Ramones tomando uma geral da Rota! No primeiro show, um moleque morreu depois de ter sido esfaqueado na plateia. No dia seguinte, as ruas em volta do Dama Xoc tavam lotadas de policiais. Na segunda noite , eu cheguei pelos fundos da casa e vi um camburão da Rota parado, e os gambés enquadrandoos Ramones. Tavam os quatro na parede, levando geral, parecia a capa do primeiro disco deles. Eu corri desesperado: “Tenente, puta que pariu, esses são os Ramones! Uma banda famosa!”. O gambé não tinha a menor ideia do que eu tava falando” (pág. 197)
Durante a década de 90, tornou-se apresentador da MTV com os programas mais divertidos e absurdos que já vi na TV brasileira. Garganta e Torcicolo, por exemplo, era um programa com um game muito avançado para a época, onde você ligava para o programa, escolhia um dos personagens e passava a controla-los pelas teclas de seu telefone em uma fase de jogo, onde você tinha que, além de pular e desviar de objetos, trucidar ovelhinhas que apareciam no caminho. Tudo isso, intercalado com videoclipes de bandas legais. Eu adorava. Sem contar os diversos programas de entrevista.
Embora a aparência e até mesmo fama de punk, desbocado, tosco; o João é um cara muito inteligente, um excelente entrevistador e com uma memória cultural, televisiva e musical invejável. Hoje, um pai de família com dois filhos, apresenta seu programa de entrevista e culinária Vegana (sim acredite) na web, o “Panelaço”.
Pra quem quer conhecer um pouco mais sobre o início do movimento punk no Brasil, sobre sua vida, ou simplesmente dar muita risada, eu recomendo demais. São 320 páginas, quase todas elas com fotos, que são rapidamente devoradas. Destaque para o capricho da Dark Side Books com a arte e acabamento do livro, que valorizam ainda mais a obra. Então, boa leitura e Viva La Vida Tosca.