Rútilos (Hilda Hilst): para vasculhar as obscuridades da vida

Ler e escrever sobre Hilda Hilst não é um processo simples, pois ela tem um poder de vasculhar lugares obscuros da vida e, mesmo quando já se conhece a obra da autora, o mistério emerge em segundos e desaparece. E eu pude perceber isso com mais intensidade no livro Rútilos, publicado e organizado por Alcir Pécora em 2003, que contém a prosa poética “Rútilo Nada” (publicada anteriormente em um único livro) e outros textos da autora que evocam temas em comum.

Rútilos
O livro. Rútilos é a reunião de duas obras consagradas de Hilda Hilst: Rútilo Nada e Pequenos discursos. E um grande. Compre na Amazon

Dividido em “Pequeno Discurso. E um grande” e “Rútilo Nada” a autora entrelaça temas importantes para a sociedade contemporânea, que abordam a homossexualidade e a ditadura militar, por exemplo. Porém, quando se lê Hilda Hilst há uma particularidade impossível de não ser observada, que é a estrutura de seu texto, que vai a extremos – no sentido de como o leitor perceber e o seu texto – caótico ou erudito? É um caminho difícil, mas intenso e, em muitos momentos, é como se fosse possível estar nos braços desse maravilhoso emaranhado de palavras, em um profundo mergulho, como se realmente fôssemos nos afogar – e amar suas histórias que podem ser absurdas, mas que ainda tratam da existência do ser humano, toda a sua grandiosidade, mas também toda a sua podridão.

Comentarei abaixo sobre os contos que mais gostei do livro.

Projeto: construir uma casa dentro de mim

“O rei, repressão, corpo. O rei, sepultura do povo.” (p. 19)

O primeiro conto começa com um desejo de construir uma casa. Chama-se Projeto e ele me trouxe uma sensação muito comum, que, acredito, muitos de nós convivemos com ela: que talvez não seja possível realizar alguns desejos, porque a rotina da vida vai dilacerando tudo. Aqui, pequenas evidências dos temas que serão abordados nos próximos contos já aparecem, como a relação do homem com o poder e o tempo.

“Fecundo e odioso pode ser o grito de quem jamais ouviu sua própria palavra, experimenta, meu rei, repetir FACA FACA, mentalmente desenhá-la, FACA FACA e pensa numa bota sobre a tua cara, FACA FACA e a tua boca de sangue, e de repente ao teu alcance o instrumento de aço. Não te tornarás inteiro fogo e agressor? FACA, meu rei, palavra que dirá teu povo, com a mesma volúpia com que dizes amor. E com a mesma inflexão dos justos. Eu, Hiram, vou construir uma casa. Dentro de mim, sagrado descontentamento” (p. 19-20)

Gestalt: sempre de alguma coisa temos medo

Na sequência, o leitor irá encontrar um conto que, em sua primeira camada, pode ter ares divertidos e singelos, pois é a relação de um professor de Matemática com um bicho de estimação um pouco incomum – um porco. O nome do conto é Gestalt e o homem chamado Isaiah, que a princípio tem medo do porco, aprende com sua mãe sobre os seus sentimentos e, revisitando suas lembranças do passado, consegue conviver com o porco, que ganha o nome de Hilde, o mesmo nome de sua mãe.

Porém, na segunda camada, certas nuances precisam ser observadas: sabemos que na infância do menino o pai falava que ele era “immer krank” (em Alemão, e significa “sempre doente”) e a mãe afirmava que não era doença, era medo. E isso de lidar com o medo que sentia da porca, foi por meio da frase sempre dita pela mãe, que ele não tinha doença, mas tinha medo.

É narrado, com brevidade, que Isaiah descobriu que o seu animal não era um porco e sim uma porca. É comentado de um casamento. Não há certezas, mas a pergunta que fica é: o homem casou com a porca?

E para finalizar há um parênteses, em toda essa história – que amplifica a relação do pai, a doença do garoto e o olhar cuidadoso da mãe:

“Um parêntese devo me permitir antes de terminar: Isaiah foi plena, visceral, lindamente feliz. Hilde também.” (p. 23)

Não é a primeira vez que o animal porco/porca aparece na obra de Hilda Hilst, justamente nesse contexto de humanização. Alguns pesquisadores da obra da autora afirmam que o “porco-menino” em “A Obscena Senhora D.” é uma representação de Deus. Sabemos também que relações homossexuais e desconstruções de gêneros permeiam toda a sua prosa-poética. Então, quando terminei de ler e reler essa história, além de consagrá-la dentro de mim mais uma vez como a grande escritora do nosso Brasil (e do mundo – como ela mesma se colocou em algumas entrevistas e eu concordo), o que fica é essa ideia do quanto  Hilda Hilst esteve a frente de seu tempo e ainda estará por muito tempo.

Esboço: o Tempo e o pessimismo

Esboço, o conto que vem na sequência retoma com mais força essa questão do tempo e também, como um aviso, dos fragmentos da prosa-poética da autora. Mora Fuentes – amigo da autora – tem o papel de interlocutor na obra, que propõe perguntas e também tenta chegar a respostas. É como se o registro que lemos é o que foi possível fazer e, por outro lado, uma representação do que é a existência – um eterno esboço que não sabemos como começou e como terminará. Quem narra essa história tem um desejo por alcançar respostas, por outro lado, demonstra também um certo pessimismo.

“Que o pensar dos outros e o meu próprio pensar, que também o que se via, e sentimentos, atos, e o que me circundava, a mim, e aos outros, era apenas Esboço, foi a única nitidez que consegui expelir em toda a vida esboçada.” (p. 24)

Em Da prosa, este e todos os outros títulos da lavra ficcional da autora de Rútilo nada aparecem reunidos pela primeira vez. A cada página, o leitor pode notar como a escrita de Hilda, que nos anos 1990 daria “adeus à literatura séria” para se dedicar a sua trilogia erótica, se mantém profundamente autêntica, transgressora e, sobretudo, atual. Em caixa com dois volumes, esta edição inclui textos inéditos de Daniel Galera e Carola Saavedra — dois aclamados escritores da nova geração, leitores e admiradores de Hilda — e de Alcir Pécora, que organizou a obra da escritora nos anos 2000 para a editora Globo. Compre na Amazon

Teologia Natural: o tempo e o futuro

O conto começa: “A cara do futuro ele não via. A vida, arremedo de nada.” (p. 29) e assim podemos imaginar as tantas pessoas desse país que estão na mesma situação e os extremos de suas ações não percebidos por eles mesmo, pois é a fome de pão – literalmente, que se torna o senhor de suas atitudes. Assim, com muita dor e angústia, o leitor irá acompanhar a breve história de um homem que vai até a cidade vender a própria mãe.

O grande-pequeno Jozu

O último conto da primeira parte do livro Rútilos merece destaque por conta de sua beleza estética – como tudo que Hilda Hilst produz, mas também por conta do tema abordado. Um homem que é um adestrador de ratos e a sua relação com a própria família e as pessoas da cidade. Ele, que pode representar o artista. A sua família representando uma família mesmo mas sem as estruturas tradicionais. E a cidade que pode representar as pessoas que desejam conhecer a sua obra, mas também fazem parte de um meio social e político que destroem tudo o que pode ser belo, tudo o que pode vir do homem com o seu rato. Há ainda um outro elemento que pode ser uma metáfora para a solidão do artista e todo o seu processo criativo. Jozu só se sente bem quando está no fundo do poço seco, literalmente.

“Sempre que posso evito assuntos querelantes. Meter, fome, generais, sistema, parecem assuntos querelantes. Lá no fundo do poço seco onde eu sempre me meto assim que chego, me vem uma coisa na garganta e começo a chorar. Digo para mim mesmo que aqui no fundo e no fundo de mim, eu sinto que gosto muito mas muito mesmo do meu rato, que eu não sei como é que isso ficou assim tão importante, isso de ter rato, de gostar dele, e de ter vontade de morrer se ele morrer.” (p. 63)

Em um clima de ditadura, Jozu precisa comprar pólvora, mas é alertado do perigo caso os generais descobrissem, o personagem narrado faz a pergunta sobre o que realmente é um farda. E a sequência da prosa poética tecendo os elementos sociais, culturais e agressivos que compõem o poder pela arma e pela violência ganham um sentido muito profundo, que chega a doer. O trecho merece ser compartilhado. Pois vivemos momentos tão difíceis.

“Aí o Stoltefus aponta um menino fazendo tátátátátá pra gente com metralhadora de brinquedo, e diz: olha aí, Jozu, esse já é um general. Eu digo você não entendeu, Stol, eu quero saber de um general de verdade. O Stoltefus chama o menino assim: ô garotão, vem aqui, que bonito isso de metralhadora, hein? Conta aqui pro meu amigo Jozu, encantador de rato, olha o rato dele, anda meio depenado, mas conta aqui o que é que você faz com essa metralhadora. Eu mato gente. Ah, sei, o que você quer ser quando crescer? Um macho. Muito bem, muito bonito. Um general, o menino completa, esses que mandam nesses que matam. E por quê? O senhor é bobo, o senhor é um velho bobo, todo mundo sabe que é bom sere general, e por que esse aí tem esse rato nojento nessa caixa? Esse rato é muito bonito, menino, eu Jozu digo, ele sabe se balançar no balancinho. Esses ratos devem ser chutados, esmigalhados incendiados, enterrados. Seguro a caixa de vidro e saio correndo.” (p. 75)

Rútilo Nada

Rútilo Nada, então, é que completa o título do livro. Publicado pela primeira vez em 1993, o conto ou novela, mistura prosa poética e poesia. Começa como um conto e de repente o leitor está lendo poesia. A história é sobre uma amor homossexual, proibido e esmagado por tantas questões externas e internas que fica difícil delimitá-lo em qualquer temática. No próprio texto de Hilda temos “Há um acúmulo de significados tomando conta das coisas neste instante, as coisas estão crescendo de significado.” (p. 99).

Há tantos mais para escrever/dizer sobre Hilda Hilst, mas paro por aqui. Nela mora – para mim – um perplexidade que não passa; uma admiração confusa mas que eu não quero que passe. Não decifro-a nem um pouco, mas a quero sempre por perto.

“Até um dia. Na noite ou na luz. Não devo sobreviver a mim mesmo. Sabes por quê? Parodiando aquele outro: tudo o que é humano me foi estranho.” (p. 103)

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