Além do forte teor crítico, a produção poética de Maria Firmina dos Reis traz influências do Ultrarromantismo do século XIX, que marcou diversas obras brasileiras do período.
Quando pensamos em poesia brasileira, não é raro que os primeiros nomes sejam de poetas… Carlos Drummond de Andrade, Manoel de Barros e por aí vai.
As mulheres ainda não ganharam o devido destaque. E quando se trata de poetas negras, a situação ainda é mais dramática, e sabemos que não é por falta de excelentes escritoras em nosso país. E uma das poetas negras que vem ganhando reconhecimento, ainda que tardiamente, é Maria Firmina dos Reis.
Primeira poeta maranhense, Maria Firmina nasceu em 1825 e morreu em 1917, aos 92 anos de idade. Em 1859, publicou Úrsula, primeiro romance brasileiro anti-escravagista e primeiro escrito por uma mulher no Brasil, e, em 1871, lançou Cantos à beira-mar. Além do pioneirismo na literatura, Maria Firmina também desafiou os padrões no campo da educação. Ela foi primeira mulher a ser aprovada em um concurso público no Maranhão para o cargo de professora de primário. Com o próprio salário, sustentava-se sozinha em uma época em que isso era incomum e até mal visto para mulheres. Oito anos antes da Lei Áurea, criou a primeira escola mista para meninos e meninas – que não chegou a durar três anos, tamanho escândalo que causou na cidade de Maçaricó, em Guimarães, onde foi aberta (fonte: Revista Cult) .
Além do forte teor crítico, sua produção poética também traz influências do Ultrarromantismo do século XIX, que marcou diversas obras brasileiras do período. Deixamos, aqui, cinco poesias para conhecermos mais a obra da escritora e professora Maria Firmina dos Reis!
MELANCOLIA Oh! se eu morresse no cair da tarde, De tarde amena, quando a lua vem Chovendo prata sobre o liso mar, Trajando as vestes, qu’a pureza tem. Então talvez eu merecesse afetos, Desses qu’apenas alcancei sonhando; Talvez um pranto bem sentido, e triste, Meu frio rosto rociasse brando. A ti poeta ─ mais te vale a morte Na flor da vida ─ a sepultura, os céus! Quem sofre a terra te compreende as dores? Teus sofrimentos, quem compreende? Deus! Sim, venha a morte libertar-me, amiga Da triste vida, qu’a ninguém comove… Bem-vinda sejas ─ teu palor me agrada, E a crua foice, que tua destra move. E tu sepulcro, ─ tu gélido, e negro, Eu te saúdo, oh! companheiro nu! Talvez meus cantos te penetrem o seio, Pálido afeto, me dispenses tu. Não terá prantos sobre a lisa campa, Quem peito humano a lhe gemer não tem; Oh! não poeta: ─ se alvorada chora Bebe esse pranto, qu’adoçar-te vem. Inda me resta no correr da vida, Essa esperança de morrer… a só. Sentida ─ triste, qu’o sofrer ameiga, Que segue o homem té fundir-se em pó. Morra eu ao menos no cair da tarde, A hora maga, que se pensa em Deus, Em que se escuta misteriosos cantos, Concertos sacros nos longínquos céus. Então já queixas não farei da sorte, Rirei da vida qu’amargar sentia; Compensa as dores d’um viver sentido, Morrer a hora do cair do dia. - In: Úrsula e outras obras. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. p. 220.
O MEU DESEJO A um jovem poeta guimaraense Na hora em que vibrou a mais sensível Corda de tu’alma ─ a da saudade, Deus mandou-te, poeta, um alaúde, E disse: Canta amor na soledade. Escuta a voz do céu, ─ eia, cantor, Desfere um canto de infinito amor. Canta os extremos d’uma mãe querida, Que te idolatra, que te adora tanto! Canta das meigas, das gentis irmãs, O ledo riso de celeste encanto; E ao velho pai, que tanto amor te deu, Grato oferece-lhe o alaúde teu. E a liberdade, ─ oh! poeta, ─ canta, Que fora o mundo a continuar nas trevas? Sem ela as letras não teriam vida, Menos seriam que no chão as relvas: Toma por timbre liberdade, e glória, Teu nome um dia viverá na história. Canta, poeta, no alaúde teu, Ternos suspiros da chorosa amante; Canta teu berço de saudade infinda, Funda lembrança de quem está distante: Afina as cordas de gentis primores, Dá-nos teus cantos trescalando odores. Canta do exílio com melífluo acento, Como Davi a recordar saudade; Embora ao riso se misture o pranto; Embora gemas em cruel saudade… Canta, poeta, ─ teu cantar assim, Há de ser belo, enlevador, enfim. Nos teus harpejos, juvenil poeta, Canta as grandezas que se encerram em Deus, Do sol o disco, ─ a merencória lua, Mimosos astros a fulgir nos céus; Canta o Cordeiro, que gemeu na Cruz, Raio infinito de esplendente luz. Canta, poeta, teu cantar singelo, Meigo, sereno como um riso d’anjos; Canta a natura, a primavera, as flores, Canta a mulher a semelhar arcanjos, Que Deus envia à desolada terra, Bálsamo santo, que em seu seio encerra. Canta, poeta, a liberdade, ─ canta. Que fora o mundo sem fanal tão grato… Anjo baixado da celeste altura, Que espanca as trevas deste mundo ingrato. Oh! sim, poeta, liberdade, e glória Toma por timbre, e viverás na história. Eu não te ordeno, te peço, Não é querer, é desejo; São estes meus votos ─ sim. Nem outra coisa eu almejo. E que mais posso eu querer? Ver-te Camões, Dante ou Milton, Ver-te poeta ─ e morrer. - In: Úrsula e outras obras. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. p. 202-203.
NO ÁLBUM DE UMA AMIGA D'amiga a existência tão triste, e cansada, De dor tão eivada, não queiras provar; Se a custo um sorriso desliza aparente, Que máguas não sente, que busca ocultar!?... Os crus dissabores que eu sofro são tantos, São tantos os prantos, que vivo a chorar, É tanta a agonia, tão lenta e sentida, Que rouba-me a vida, sem nunca acabar. D'amiga a existência Não queiras provar, Há nelas tais dores, Que podem matar. O pranto é ventura, Que almejo gozar; A dor é tão funda, Que estanca o chorar. Se intento um sorriso, Que duro penar! Que chagas não sinto No peito sangrar!... Não queiras a vida Que eu sofro - levar, Resume tais dores Que podem matar. E eu as sofro todas, e nem sei Como posso existir! Vaga sombra entre os vivos, - mal podendo Meus pesares sentir. Talvez assim deus queira o meu viver Tão cheio de amargura. P'ra que não ame a vida, e não me aterre A fria sepultura. - In: Úrsula e outras obras. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. p. 221-222.
ESQUECE-A Amor é gozo ligeiro, Mas é grato e lisonjeiro Como o sorriso infantil; Promessa doce, e mentida, Alenta, destrói a vida; É um delírio febril. Muito te amei… minha lira, Que triste agora suspira, Nesta erma solidão, Bem sabes ─ ricas de flores, Cantava os ternos amores, Do meu terno coração. Minha afeição era pura. Não era engano, cordura, Não era afeto mentido; Se ela assim te não cativa, Esquece-a, que sou altiva, Esquece-a, sim ─ fementido. - - In: Úrsula e outras obras. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. p. 228.
Se você gosta de Maria Firmina dos Reis, conheça: Diário de Bitita (Carolina Maria de Jesus) e a memória de uma mulher às margens
A DOR, QUE NÃO TEM CURA “O que mais dói na vida não é ver-se Mal pago um benefício, Nem ouvir dura voz dos que nos devem Agradecidos votos. Nem ter as mãos mordidas pelo ingrato Que as devera beijar.” G. Dias De tudo o que mais dói, de quanto é dor Que não valem nem prantos, nem gemidos, São afetos imensos, puros, santos Desprezados – ou mal compreendidos. É essa a que mais dói a um’alma nobre. Que desconhece do interesse a lei; Rica de extremos, não mendiga afetos, Que é mais altiva que um potente rei. É essa a dor, que mais nos dói na vida; É essa a dor, que dilacera a alma: É essa a dor, que martiriza, e mata. Que rouba as crenças, o sossego, a calma. Não sei, se todos no volver dos anos Sentem-na funda cruciante, atroz Como eu a sinto… Oh! é martírio – ou vele, Ou sonhe, – ou vague mediante a sós. Eu vi fugir-me como foge a vida Afeto santo de extremosos pais: Roubou-mos crua, impiedosa morte, Sem que a movessem meus doridos ais. Vi nos espasmos de agonia lenta Morrer aquele, que eu amei na vida… Trêmulos lábios soluçando – adeus! Ouviu-lhe esta alma de aflição transida. Dores são estas, que renascem vivas A cada hora – que jamais esquecem; Enchem de luto da existência o livro, Conosco à campa silenciosa descem. Ah! quantas vezes, recordando-as hoje, Dos roxos olhos se me verte o pranto! Ah! quantas vezes, dedilhando a lira, Rebelde o peito, não soluça um canto… Mas, se essas dores despedaçam a alma, O pranto em baga nos consola a dor: Numa outra esfera, num perene gozo, Vivem, partilham divinal amor. Mas ah! de quanto nos aflige, e mata É esta a dor, que mais nos dói sofrer; Cobrar frieza em recompensa a afetos, No peito amigo estrebuchar, – morrer! - In: Úrsula e outras obras. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. p. 265-266.
Imagem de destaque: Arte de Antonio Hauaji/ MultiRio sobre selo comemorativo da Academia Maranhense