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“A vida mentirosa dos adultos” (Elena Ferrante): um ciclo quebrado

A quebra do ciclo da mentira em novo livro de Elena Ferrante, “A vida mentirosa dos adultos”[1]

“Mentiras, mentiras, os adultos as proíbem, porém dizem tantas.”[2]

Em A vida mentirosa dos adultos (Intrínseca, 2020), nos deparamos com a narrativa simples e bem construída de Elena Ferrante. A autora, com seus curtos capítulos, é capaz de fixar o leitor, pois ao final de cada trecho queremos continuar a leitura para saber o que irá acontecer.

Como está dito no próprio título do livro, o fio condutor é a mentira. Ao longo da história, vamos encontrar mentiras cotidianas e mentiras que os personagens contam para si próprios a fim de se esconder da verdade – afinal, muitas vezes a verdade é dolorosa. Giovanna, uma menina na fase da adolescência, leva-nos novamente para Nápoles, porém, dessa vez, estamos na parte alta e nobre da cidade.

O curioso é que, logo de cara, percebemos que, mesmo dentro dessa cultura da elite intelectual, os problemas humanos, dentre os quais está a mentira, seguem ocorrendo. Talvez as inverdades, nesse caso, apareçam de um modo mais bem construído, mas nem tanto, já que uma garota percebe como seus pais mentem. Além disso, a própria personagem – que tanto se incomoda com as mentiras que seu pai contava sobre a tia Vittoria, ou, ainda, com as mentiras de sua mãe – é uma mentirosa. Tudo começa aí, quando o pai a compara com a tia, que era sempre mal falada por eles, e a jovem deseja conhecer a “péssima” parente – que vive na “outra” Nápoles, no setor industrial e suburbano.

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Até aqui, busquei ao máximo não dar spoilers, mas daqui por diante, aviso a você, caro(a) leitor(a), que isso não será mais possível.

Com o divórcio dos pais, Giovanna reflete sobre a mentira: “Naquela fase, a mentira e a prece entraram estavelmente na minha vida cotidiana e de novo me ajudaram muito. As mentiras, em sua maioria, contei a mim mesma. Eu estava infeliz e fingia até demais estar alegre na escola e em casa.”[3] Mas, como toda mentira tem perna curta, esses autoenganos têm seus dias contados. Giovanna passa a ter contato com a tia, o que faz com que apareçam mais dúvidas e questões para nossa adolescente.

No processo entre o divórcio dos pais e conhecimento da tia, a personagem descobre sobre uma pulseira que percorre toda a narrativa e pode ser vista como um objeto simbólico do eterno ciclo. De acordo com Vittoria, ela havia dado a pulseira da mãe para Giovanna em seu nascimento, mas até então a garota nunca soube da existência da joia. Seus pais se separam após a descoberta de que Andrea (pai) e Constanza (esposa de Mariano) tinham um caso; o curioso é que parece que Mariano e Nella (mãe) também tinham um envolvimento. Eis aqui o ciclo. Traições e mentiras em círculos íntimos, o que explica porque Constanza, e não ela ou sua mãe, era a portadora da pulseira de tia. Vittoria também está nesse eterno ciclo, porque ela era amante de seu falecido grande amor e, paradoxalmente, após a morte dele passou a cuidar da viúva Margherita e de seus filhos.

“Vittoria, Vittoria, eu não sabia o que pensar, ela era realmente como meus pais a descreviam. Ela a havia tirado de mim, que era sua sobrinha, e, embora parecesse que não podia viver sem ela, dera a pulseira à afilhada. Como a joia brilhava no pulso de Giuliana, como ganhava valor.”[4]

É no ciclo das traições e mentiras que encontramos a ruptura. Após se tornar muito amiga de Giuliana, filha de Margherita, e noiva de Roberto, Giovanna percebe que sua amizade era por interesse nele. Até que aparece a ocasião perfeita para que ela continue aquilo que seus pais fizeram, que sua tia fizera e, talvez, suas amigas também, especialmente Ângela (filha de Mariano). Depois de viajarem para ver Roberto, Giuliana esquece a bendita pulseira e Giovanna se oferece para voltar até a casa de Roberto e pegá-la, enquanto a amiga distrai tia Vittoria.

“De repente, consegui dizer a mim mesma com clareza que eu não tinha intenções nobres, que eu não estava fazendo aquela viagem para recuperar a pulseira, que não tinha intenções de ajudar Giuliana. Eu estava indo traí-la, estava indo pegar para mim o homem que ela amava.”[5]

Nesse momento, percebemos a briga interna pela qual passa a personagem, mas sua decisão é que surpreende: ela escolhe não ceder ao desejo por Roberto, ela escolhe não trair, ou seja, escolhe a verdade de que foi até lá para isso, mas que não era o certo a se fazer – e digo ela, porque, ao que indica a narrativa, Roberto estava inclinado a se relacionar.

E a pulseira? Giovanna a recupera e a verdade sobre o objeto é que Enzo havia dado a joia de presente para a mãe de Vittoria e que a roubara de sua sogra doente. Mais um ciclo de mentira, rompido pela verdade descoberta por Giovanna. Portanto, vemos um ciclo quebrado, quando a personagem decide agir de um modo diferente; ela decide buscar a verdade, escolhe boas intenções. Não sei se o final com Rosario é o que esperávamos (acho que não), todavia, sem dúvidas, é o que escolheu Giovanna: quebrar o ciclo que tanto a perturbou.

“Mas logo depois senti toda a verdade, todo o peso daquelas duas palavras, e me pareceu claro por que Vittoria tinha aquele comportamento ambíguo em relação à pulseira. Formalmente ela a queria, mas, na verdade, tendia a querer se livrar dela. Formalmente, era da sua mãe, mas, na verdade, não era. Formalmente devia ser um presente para sabe-se lá qual festa da nova sogra, mas, na verdade, Enzo a roubara da velha sogra que estava nas últimas. No fim das contas, a joia era a prova de que meu pai não estava totalmente enganado a respeito do amante da irmã. E, de modo geral, testemunhava que o incomparável idílio relatado por minha tia devia ter sido tudo menos um idílio.”[6]

Acredito que uma das lições que podemos tirar disso é algo óbvio, mas nem por isso fácil: a verdade é sempre preferível à mentira. Não significa que ela não trará dores e rupturas, mas significa que ela ajudará a findar algumas perturbações da vida.

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a vida mentirosa dos adultos
Imagem: Divulgação/Intrínseca

[1] Deixo aqui meus agradecimentos à Rossana Pinheiro-Jones, pois foi a partir de uma conversa com ela que surgiu a ideia deste texto. Agradeço também às amigas Beatriz Boldrini e Stella Dizeró com as quais tive o prazer de conversar sobre esse livro.

[2] FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos. Versão Kindle, posição 2153.

[3] Ibidem, posição 1732.

[4] Ibidem, posição 3292.

[5] Ibidem, posição 4346.

[6] Ibidem, posição 3962.


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