O reconhecimento de um certo anonimato sobre a vida lá fora como um caminho para o feminismo de Hilda Hilst.

    “e o que foi a vida? uma aventura obscena, de tão lúcida.”
    (p. 71, A Obscena Senhora D.)

    Hilda Hilst, mulher, brasileira, escritora. Faleceu em 2004, aos 74 anos e nos deixou livros marcados pelo seu estilo único, ora pela seriedade, ora pela obscenidade. Se fez presente na poesia, no romance, no fluxo de consciência e no erótico. E assim, como disse Heloneida Stuart, amiga da escritora: Hilda, se você fosse um homem, escrevendo a prosa que você escreve, você seria conhecida no país inteiro“. Podemos acrescentar que se assim fosse, Hilda seria conhecida no mundo inteiro!

    É claro que se ela fosse um homem a sua arte literária seria, provavelmente, diferente, portanto, difícil dizer sobre o impacto que provocaria em seus leitores e críticos mas, é fácil encontrar certos elementos da nossa vida em sociedade que dá força à ideia de que o anonimato social de uma mulher leva a sua carreira profissional para um lado diferente, como se mesmo fazendo parte dos grandes nomes da literatura, Hilda Hilst, por ser mulher, tivesse sempre à margem. Assim como informou Virginia Woolf, “por muito tempo na história, Anônimo era uma mulher“.

    O reconhecimento deste anonimato sobre a vida lá fora pode ser um caminho para o feminismo. No caso de Hilda Hilst, o feminismo está presente em toda a sua obra, mas também em sua fala, na sua postura, nas entrevistas que deu e também no jeito que escolheu viver.

    Um teto todo dela

    Hilda Hilst tinha um teto todo dela e dinheiro (conceito empregado por Virginia Woolf, em Um Teto Todo Seu); e assim conseguiu ser livre para escrever sobre o que quisesse, porém, o mundo à sua volta não era livre e recebeu a autora como uma figura provocadora. E ela adorava isso! Como prova, além de tudo, temos a sua obra erótica que até hoje causa espanto até nos mais libertários.

    “O que é que há de errado com o cu, eu me perguntava. Eles achavam absurdo, deviam ser freirinhas ou noviços que manipulavam a gráfica, não sei. Obsceno não é o cu, mas as bombas de Napalm. As verdadeiras obscenidades, as políticas, ninguém toca nisso.” (p. 260, Fortuna Crítica, Pornô Chic, Editora Globo)

    Quando Hilda Hilst lançou “O caderno rosa de Lory Lamb” até os seus amigos mais íntimos ficaram espantados. Lygia Fagundes Telles, amiga da autora disse que ficou “meio assustada, aturdida“. Entretanto, outros gostaram de ler, mas não tinham coragem de resenhar a obra para algum jornal. E também, claro, como uma característica do mundo patriarcal, quando uma mulher fala sobre sexo, o homem não gosta:

    “O pintor Weley Duke Lee achou a obra “um lixo absoluto. Outro, o médico José Aristodemo Pinotti, ex-secretário da Saúde do Estado de São Paulo, considerou que “uma poetisa nunca deveria enveredar pelo pornô”.

    (p. 245, Fortuna Crítica, Pornô Chic, Editora Globo)

    Uma escritora de provocações

    Interessante que a constante provocação de Hilda Hilst não fez parte apenas de sua obra lançada como erótica. O sexo, a liberdade da mulher e a crítica ao mercado editorial, estão presentes nos outros livros da autora (e na sua própria vida pessoal), alguns com mais sutilezas; mas outros que demonstraram a força do erótico na obra da artista, como o caso de “A Obscena Senhora D.“, que mistura, brilhantemente, existencialismo, sexo, loucura e a terceira idade.

    Hilda Hilst afirmou que gostaria de vender, gostaria de ser popular – para ser lida sempre – e que o caminho para a literatura erótica aconteceu por ela acreditar que, assim, seria lida por muitos. Porém, o estilo, tão original e único da autora, fez de seus textos eróticos pura prosa poética, de linguagem riquíssima, que impressiona muito pela técnica, além da coragem e assim, afasta-a de muitos leitores. A própria autora afirmou que possuía “um carimbo de coisa inacessível e severa.

    O preconceito contra a mulher escritora

    Mesmo inacessível, mesmo severa, Hilda Hilst é aquele tipo de artista que você pode confiar em sua sinceridade, pois ela mesma afirmou que um verdadeiro escritor não pode mentir. Sobre ser mulher, ela assegurou em uma entrevista a Caio F. Abreu, para a revista A-Z:

    “Existe um grande preconceito contra a mulher escritora. Você não pode ser boa demais, não pode ter uma excelência tão grande. Se você tem essa excelência e ainda por cima é mulher, eles detestam e te cortam. Você tem que ser mediano e, se for mulher, só falta te cuspir na cara.”

    (p. 259, Fortuna Crítica, Pornô Chic, Editora Globo)

    E dentro de sua sinceridade, morava em Hilda Hilst a consciência de ser. Mulher, livre, dona do próprio nariz, decidia sozinha o que iria escrever, fazia escolhas para se sentir leve.

    “Achei que, para o meu músculo mental continuar ativo, eu devia optar pela leveza. (…) Era uma grande dificuldade antes, eu tremia diante da página. Então, enquanto for uma coisa feliz, eu vou continuar fazendo esse tipo de literatura [a erótica].” 

    (p. 258, Fortuna Crítica, Pornô Chic, Editora Globo)

    Entre tudo; e tanto, o assunto Hilda Hilst está sempre à frente de nosso tempo, pois não tem fim a sua literatura, seja na prosa ou na poesia. Como pessoa, Hilda Hilst, é um exemplo para todas as mulheres quando o tema é sobre possiblidades – e também consequências – em escolher o próprio caminho. A sua vida literária, sempre marcada por provocações, a transformaram em uma das mulheres mais fortes de nossa literatura.

    É a consciência sobre si mesma que permite a reflexão sobre o próprio trabalho, pois o fato de ser mulher, presenteia-a com a importância de acreditar em si mesma. E como escritora do tipo que não aceita mentir, cabe ao leitor a contemplação, o respeito e também a inspiração:

    “Depois de ter escrito tudo que eu escrevi, e eu sei que escrevi lindamente, que modifiquei a prosa narrativa, eu tenho plena consciência disso, não aconteceu nada. Fiz uma revolução na língua portuguesa, enfoquei os problemas mais importantes do homem, procurei fazer o possível para o outro se conhecer. Fiz um lindo trabalho. E não aconteceu absolutamente nada, não fui lida.” 

    (p. 257, Fortuna Crítica, Pornô Chic, Editora Globo)

    “Não aconteceu nada”

    Nesta linha de pensamento, temos Virginia Woolf no livro Um Teto Todo Seu que afirma a importância da literatura escrita por mulheres que, mesmo trabalhando na obscuridade, vale à pena. Assim, Hilda Hilst mesmo sabendo que a sua arte não havia mudado nada, continuou, persistiu, para que você, leitor, conheça a genialidade de uma autora que escreveu além dos holofotes, além da fama, apenas por acreditar que estava vivendo como gostaria de viver. E ela fez um lindo trabalho. Mesmo. E que merece ser lido, relido e expandido.

    O fato de Hilda Hilst repetir que “não aconteceu nada” explica-se por meio de uma simples e verdadeira convicção literária: quando um autor é realmente incrível e genial, o seu mundo não o reconhece, não o entende, porque ele está muito além daquele tempo.

    “Lembra-vos
    o que dei
    foi um amor tão puro
    Atormentado mas
    Tão claro e limpo
    E sentireis, senhor,
    Tudo o que sinto.”

    (Hilda Hist, Exercícios, p. 195)

    Recomendações de leituras:

    Poesia: Exercícios
    Prosa: A Obscena Senhora D.
    Literatura Erótica: Pornô Chic – coletânea com a Trilogia Obscena, outros textos eróticos e a fortuna crítica

    Referências:

    Hilda Hilst: Exercícios, A Obscena Senhora D. e Pornô Chic
    Virginia Woolf: Um Teto Todo Seu

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