A mão esquerda da escuridão (Ursula K. Le Guin): um livro questionador

A mão esquerda da escuridão parece um estudo antropológico sobre um planeta que não existe. A solidão do personagem principal é algo tão silencioso, mas extremamente presente em toda obra, se o leitor olhar com atenção. Portanto, sozinho em um mundo tão diferente, como seria o nosso comportamento? 

A ficção científica é uma proposta muito humana, acredito. Porque, por mais que ela coloque seres humanos, extraterrestres, robôs e outros elementos considerados – ainda, impossíveis, as suas histórias permeiam o mesmo campo de toda literatura: o indivíduo e a sua busca, seus medos, suas conquistas, suas, guerras, suas dores e as suas mudanças. Então, independente se a história acontece em um espaço sideral ou na própria Terra, é ainda o ser humano (o escritor e o personagem) ou o olhar dele para outra coisa que faz desse gênero literário tão especial e envolvente.

No livro A mão esquerda da escuridão, da escritora americana Ursula K. Le Guin, essas questões aparecem de uma forma mais sutil, porém, o que o leitor pode pensar no final da leitura pode ser considerado o grande motivo desse livro ser um marco na ficção científica. Ele é bom, apesar de demorar para “prender” o leitor, o que foi o meu caso.

Uma vida em outro planeta

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Genly Ai é um humano que está vivendo em outro planeta. Ele possui uma função diplomática, de convencer os governantes do planeta Inverno sobre uma possível aliança com outros planetas, algo que a Terra já faz parte e que permitiu, inclusive, a viagem interespacial.

São mundos totalmente diferentes, desde o modo em que as pessoas se relacionam aos seus corpos físicos. Em Inverno todos são andróginos, mas predomina as características compatíveis ao masculino (no olhar de Genly) e somente durante o período “fértil” é que acontece uma mutação em seus corpos, que podem ser transformados em um corpo feminino, para o sexo e para a procriação. Assustador, mas por outro lado podemos pensar que isso é um exemplo de uma sociedade em que as pessoas são apenas indivíduos, sem diferença em relação ao gênero, o que torna inexistente o machismo, por exemplo.

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Uma paisagem gélida

Como o próprio nome do planeta sugere, em Inverno as temperaturas são baixíssimas, há grandes descrições sobre a gélida paisagem do planeta que, por conta dos problemas causados em sua permanência em Inverno, permite que Genly explore boa parte desse território que parece tão distante, misterioso, espetacular e também intimidante.

O narrador-personagem

A história é narrada pelo próprio personagem principal, Genly Ai. O livro é como um diário de bordo dessa viagem tão profunda que o personagem faz. Como ele tem um propósito político e científico, o leitor não pode esperar descrições muito sentimentais sobre esse mundo tão louco, mas sim, um texto claro e objetivo que descreve, além das paisagens, as observações de Genly sobre os andróginos que ele mantém contato, mas sempre de um jeito muito formal – ou para chegar a um novo destino, ou para tentar algum contato político, até a chegada de um outro personagem, Straven, que pertence a esse planeta tão gelado, mas que promove uma transformação delicada no comportamento de Genly e também no comportamento do leitor. É por meio da conversa desses dois personagens, que a história se torna mais interessante.

Parecia prestes a chorar, mas não chorou. Acredito que considere o choro mau ou vergonhoso. Mesmo quando esteve muito doente e fraco, nos primeiros dias de nossa fuga, ele escondia o rosto de mim quando chorava. Razões de ordem pessoal, racial, social, sexual – como posso adivinhar por que Ai não consegue chorar? Contudo, seu nome é um grito de dor. (p. 222)

Um estudo antropológico da solidão

A mão esquerda da escuridão parece um estudo antropológico sobre um planeta que não existe. A solidão do personagem principal é algo tão silencioso, mas extremamente presente em toda obra, se o leitor olhar com atenção. Portanto, sozinho em um mundo tão diferente, como seria o nosso comportamento? Genly, sem perceber, parece se tornar um pouco andrógino e se incomoda quando encontra um ser com caracteristicas que ele considera feminina ao ponto de registrar diversos comentários machistas em sua própria história. Desconectado, acuado e desconfiado, é esse o humano que conta a sua experiência em um lugar que, em muitos momentos parece tão moderno, em outros tão ultrapassado.

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Nas histórias mitológicas de Inverno, o leitor também irá descobrir elementos para compreender mais sobre a obra, mas ficará ao mesmo tempo aturdido e impressionado. Se o objetivo do livro foi apresentar uma história tão exótica, está nas entrelinhas as respostas e principalmente os questionamentos sobre o nosso mundo, a nossa sociedade, nossas incongruências sociais, políticas e de relacionamentos. Ursula K. Le Guin merece, por isso e muito mais, todas as reverências no universo da ficção científica e de toda a literatura. Viva!

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