Livro de Herta Müller traz o sofrimento e o terror da opressão sob o regime comunista, da violência e da rotina.

Quando pensamos em terror, o que vem à cabeça? Um monstro escondido embaixo da cama? Um ataque zumbi? O Bolsonaro e seus filhos abrindo a boca?

Nossas ideias sobre terror são variadas, mas na maioria das vezes estão ligadas ao grotesco, ao susto, ao inesperado, àquilo que está além do controle. Porém, ao ler Depressões, de Herta Müller, o terror se mostrou para mim com outras formas. Na rotina sufocante, na violência presente em todas as criaturas, no nojento que habita em nós, no medo que paira no ar e que move cada ação, na morte presente em tudo.

O ar da opressão

Depressões (Niederungen) é o livro de estreia da romena radicada alemã, ganhadora do Nobel de Literatura em 2009. Publicada em 1982, a coletânea com 15 contos é uma denúncia contra a violência do comunismo, a opressão patriarcal, a hipocrisia da Igreja, a pobreza da vida camponesa em Banat, região entre a Romênia, Hungria e Sérvia, etc. O livro não chega a ser autobiográfico, mas a perseguição sofrida pela autora e sua família a leva a colocar, na voz de uma criança, a crítica às diversas formas de tirania e seus terrores.

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Tudo neste livro está permeado pelo ar opressivo e violento: a natureza, a rotina, o trabalho, as relações familiares. A violência, aqui, é hierarquizada. É o Estado contra os cidadãos (ou camaradas); os maridos contra as esposas; as mães contra os filhos e filhas; as crianças contra os animais; a natureza contra tudo e todos. Müller, nas páginas de seu livro, revela uma atmosfera social também permeada pela ausência: de amor, de afeto, de alegria, de cor, de liberdade, de esperança.

A precisão da linguagem

Tal opressão é exposta por Herta Müller na limitação da linguagem, na sua secura, dureza, que tenta ocultar um terremoto, um suspense latente ao fundo. A leitura é tensa, assustadora em muitos momentos, mesmo que os relatos rotineiros dessa aldeia não tragam qualquer surpresa – a vida se resume a nascer, trabalhar, apanhar e bater, adoecer e morrer. Não é à toa que a percepção desse cotidiano desiludido é de uma concretude e precisão que levaram muitos a compará-la ao estilo de Kafka.

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Mas a escritora tem um domínio próprio da escrita que merece atenção. Müller cria uma normalidade aparente e a escolha de uma menina como narradora dessa rotina da aldeia é muito inteligente, por misturar ingenuidade, lirismo (por isso a frequência de comparações com o nosso Guimarães Rosa) e, ao mesmo tempo, uma observação direta da vida. Por meio das palavras de uma criança, constrói-se o suspense, o medo, a sonolência, a morte…

“Quando uma abelha entra na boca de alguém, a pessoa morre. Ela pica o céu da boca. O céu da boca incha tanto que a pessoa sufoca com seu próprio céu da boca, dizia meu avô. Eu não parava de pensar, enquanto colhia flores, que não podia abrir a boca. Às vezes eu tinha vontade de cantar. Cerrava os dentes e esmagava a canção. Um zunido saiu de meus lábios, eu me virei para ver se esse zumbido não estava chamando alguma abelha em minha direção. Não vi nenhuma abelha em lugar nenhum. Mas eu queria que uma viesse. E eu continuaria zunindo para lhe mostrar que ela não podia voar para dentro de minha boca.” (p. 21)

Em Depressões, vemos como uma sociedade repressora mata não apenas de forma direta, mas também lentamente, ao empobrecer a vida, ao desprezar a alegria. Ficamos diante de uma menina alegre, com a curiosidade tão marcante da infância, que vai sofrendo todas as violências físicas e mentais e que vai caindo em um sono profundo, como aquele narrado no final do conto que dá nome ao livro, um sono alienador, conformado.

O terror do sono profundo

Eu me transportei para aqueles campos, onde não há qualquer apreço pela beleza, pela existência da vida, onde a natureza é cinza… Dizem que quem tem depressão vê tons de cinza com mais frequência, então talvez eu tenha sido influenciada pelas minhas próprias questões. Mas foi inevitável não me sentir sem vida ao longo dos contos, sendo despedaçada a cada página, caindo em um buraco, um caixão, uma cova, uma latrina, em uma depressão qualquer.

“Olhamos para dentro da névoa quente, que é pesada e pressiona a tampa da nossa cabeça para dentro. Olhamos para longe de nossa solidão, de nós mesmos, e não suportamos os outros e nem a nós mesmos, e os outros do nosso lado também não nos suportam.” (p. 76).

Me vi aterrorizada de tal forma que nenhum livro do gênero de terror me deixou. Eu queria acabar logo com tanto sufocamento,  queria sair desse buraco, ficar longe dessa existência perversa, na qual não há espaço para o belo, para o espontâneo, para o livre.

Porém, Müller te prende e te força a ir até o fim. E te força a pensar. Por isso, foi impossível não refletir sobre a nossa sociedade atual. Muito se utiliza este livro para denunciar os horrores do comunismo, mas fiquei me perguntando se o mundo corporativo, dominado por um capitalismo cada vez mais selvagem, não nos coloca também neste sono profundo, num mundo acrítico, infantilizado, desinteressado pela política.

Além disso, Depressões já foi criticado como “tedioso”. Mas não vivemos em um mundo assim? Um mundo no qual a violência dá emoção e vazão a uma existência vazia, seja sob regimes ditatoriais, seja sob sociedades ditas democráticas que são comandadas, na verdade, por grandes corporações.

Será que não estamos todos dormindo e vivendo em um pesadelo? Se sim, quando vamos acordar?

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