Uma reflexão sobre a homenagem da FLIP à escritora Elizabeth Bishop

    Desde que comecei a cursar Letras, no prelúdio dos anos 2000, percebi que o curso estava entre os mais despolitizados das Ciências Humanas brutas. Mesmo em universidades de ponta, como a Unicamp, onde iniciei minha trajetória, o mais longe em política que se ia era dizer que Antonio Candido (in memorian) e Roberto Schwarz eram críticos marxistas e que o Concretismo foi capitaneado por alienados (sic). O Capital? Manifesto Comunista? Nunca lemos. Quiçá nem os professores.

    Corta.

    Semana passada, a curadoria da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) anunciou que a homenageada de 2020 será Elizabeth Bishop. Para os literatos engajados a escolha soou profundamente infeliz, mas não devia. Por quê? Porque tomando a feira pelo que realmente é, – um evento custeado pela Associação Casa Azul, que apesar de dizer-se sem fins lucrativos gere parte de suas atividades através das doações de patronos –, não surpreende que seus organizadores tenham optado por uma escritora com a cara da elite brasileira em 2019: uma americana (país-fetiche do atual presidente), branca, de classe média e com uma leitura de mundo conservadora.

    Ou seja, a FLIP não tem como público-alvo quem ficou pasmo com a escolha de Bishop. Sabe-se que este é um evento excludente, do qual uma minoria da comunidade literária participa com folga, e que em suas últimas edições tornou-se uma espécie de Trancoso literária, aonde afortunados vão conferir-se fumos de erudição. Paraty, cabe ressaltar, é uma miniaturização do Brasil. A cidade registra um dos maiores índices de violência no estado do Rio de Janeiro e tem boa parte de sua população vivendo em condições insalubres, embora essa Paraty a FLIP não mostre (tem uma matéria bem legal a esse respeito aqui).

    Voltamos à despolitização nas Letras.

    Os argumentos usados pelos organizadores do evento e passadores de pano oficiais caminharam na mesma direção: as posições políticas reacionárias de Bishop não tiveram nada a ver com sua magistral poesia, assunto encerrado. Ou, ainda, que a poeta não entendia a política brasileira (afinal, era uma estrangeira) e havia apenas capitulado às opiniões de Lota de Macedo, sua companheira, esta sim envolvida com a coisa toda. As duas tentativas de defesa são anêmicas. Primeiro, porque é inverossímil que em quinze anos de Brasil Bishop tenha somente assimilado as visões de Lota, sem jamais exercer seu juízo crítico afiado. Segundo, porque é ontologicamente impossível uma cisão estanque entre vida e obra, porém não vou me aprofundar neste debate.

    Todavia, o mais alarmante não tem sido só a pobreza argumentativa em torno do debate, mas sim o uso de uma tática retórica cara à extrema-direita: a falsa simetria. Segundo Tatiana Roque, em um tuíte recente, a prática “está virando uma doença nacional”. Ora, equivaler a conivência do Executivo diante de um AI-5 com os que criticam Bishop na FLIP é, no mínimo, preocupante, ainda mais vindo de uma fonte abalizada.

    Elizabeth Bishop. Foto: Reprodução.

    De todo modo, gostaria de destacar um dos argumentos que me chamou a atenção: em 2007, o homenageado foi Nelson Rodrigues, conhecido por defender um ideário conservador, e ninguém (sic) reclamou. A verdade é que, felizmente, muita coisa mudou nos últimos doze anos. Apesar do tensionamento ideológico sob o qual vivemos há anos, muitos de nós temos nos dado conta de que tudo é ideológico. As premiações, as manifestações artísticas, os artistas, o nosso vocabulário, o que consumimos e, principalmente, como consumimos. Nesse sentido, estamos mais politizados. E isso é bom. Na última Bienal do Livro (RJ) foi essa politização através das redes que impediu a censura de Vingadores, a cruzada das crianças.

    Nem sempre sairemos vitoriosos. No caso da FLIP, a curadoria dificilmente reverá sua decisão. E não, não se trata de cancelar Bishop – para ficarmos com mais um termo despolitizado da vez, que assim como a lacração não propõe diálogo, mas sim a vitória pelo grito. É indiscutível a excelência e relevância da poeta junto à história literária canônica ocidental – convém pontuar, afinal há várias outras constelações literárias, igualmente essenciais. Acredito que ninguém está sugerindo parar de ler Bishop, ou queimar seus livros, assim como, – espero eu –, ninguém acredita que os leitores de Olavo de Carvalho começarão a consumir a poesia de uma mulher alcoólatra e lésbica (e aqui entra mais um engodo nesta história, o famigerado lugar de fala, mas fica para outro texto).

    A comunidade literária é complexa. Nos bancos dos cursos de Letras aprendemos que há, sim, uma cisão entre vida e obra, donde depreende-se a autonomia do texto literário, isto é, o que lemos não reflete o caráter de quem escreve. Por outro lado, também aprendemos – lembrem-se da tradição marxista que apontei no começo do texto – que em Literatura tudo é ideologia (F. Jameson, T. Eagleton e o incensado Candido). Deste modo, tem sido frustrante acompanhar poetas e críticos, muitos com passagem pelas pós-graduações de Letras, assumindo posturas ora despolitizadas, ora isentonas diante da escolha de Bishop pela FLIP, sem colocar um grão de sal sequer.

    Por fim, gostaria de soar mais propositiva do que cínica neste debate. Quais encaminhamentos concretos podemos dar ao burburinho-FLIP-Bishop? Vejo uma urgência em valorizar o que está à margem, como o Sarau da Cooperifa, para ficarmos com um exemplo de renome. Buscar em nossas cidades e bairros espaços públicos para pautar essas discussões, construindo eventos mais representativos, lendo autorxs fora do eixo canônico, invisibilizadxs, que burguês não lê. Fortalecer as escritas em que se conjugam vida-obra, Pagu, Maria Carolina de Jesus, tantxs outrxs, que não apenas habitaram as margens, mas são as margens.

    Update: Na noite do dia 3 de dezembro, a página da FLIP no Facebook lançou a nota abaixo:

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