Meu ano de descanso e relaxamento. Quando vi esse título recentemente, tive um interesse imediato, pois 2020 foi tudo, menos um ano de descanso e relaxamento. Então foi com essa sensação de angústia que fui buscar abrigo no livro da norte-americana Ottessa Moshfegh, publicado pela Todavia em 2019, com tradução de Juliana Cunha. Achei conforto? Muito pelo contrário.

    Nessa obra, temos a história de uma jovem sem nome. Só sabemos que ela é linda, loira, magra, rica, bem formada pela Columbia University, mora em um loft no Upper East Side, Nova York, trabalha numa galeria de arte, e está prestes a virar o milênio que promete muito. Para muita gente, tudo parece um conto de fadas moderno, não? Vamos com calma.

    Aos poucos, vamos conhecendo os dramas dessa mulher. Descobrimos que ela perdeu os pais para o câncer e para o suicídio. Sua relação familiar era péssima. Ela está cansada de tudo e todos e só quer dormir. Por isso, passa os dias no sofá em meio a medicamentos receitados por uma psicanalista no mínimo suspeita, a fitas VHS assistidas repetidamente e ao sono conturbado. Sem contar as relações tóxicas que ela mantém com a única “amiga” que a visita, Reva, e com um boy lixo que a abusa física e emocionalmente.

    Não demora para que a narradora entre numa espiral depressiva, completamente dependente de tranquilizantes de toda espécie, sobrevivendo entre crises de insônia, sono conturbado, sonambulismo e amnésia. No momento em que já não parece haver saídas para tamanho desespero, a narradora decide dormir por alguns meses usando um medicamento poderoso que a fará realmente apagar, voltar por algumas horas e apagar novamente, num ciclo ininterrupto. Tudo fica ainda mais doido quando sabemos que esse retiro será monitorado por um artista que usará o descanso da jovem como uma experiência artística que, no final, obviamente, será comercializada. Ou seja, sofrimento como performance; performance como mercadoria.

    Já correndo o risco de dar spoilers, a jovem volta de sua “viagem” e parece finalmente curada, sentindo-se bem e apreciando os ares do outono que chegam na otimista Nova York. Quando? Primeiros dias de setembro de 2001. Acho que não preciso explicar a ironia do destino.

    E Ottessa a todo momento está brincando com essas ironias, com os clichês narrativos e da própria vida. A menina rica e linda sofredora; a arte caça-níquel; autoajuda que mais atrapalha; o culto ao corpo que desumaniza; amizades e amores nocivos… Tudo está escancarado na obra e só ficamos na expectativa de onde ela quer chegar.

    Um livro feminino, mas não feminista?

    Além da narrativa crua, o que me chamou a atenção é que esse é um livro escrito por uma mulher sobre mulheres e suas relações nada idealizadas. Tirando a atriz Whoopi Goldberg, idolatrada pela protagonista – e que é querida por todos, convenhamos -, as demais personagens da obra estão longe de serem amáveis e testam a todo momento nossa sororidade.

    Reva é a amiga tóxica, gordofóbica, falsa. A mãe da protagonista, que se suicida, é retratada como uma madame mais preocupada com seus cremes e bebidas do que com o marido e a filha. Era uma mulher desconhecida para a própria família, uma figura que nos faz reavaliar o “sagrado” amor maternal.

    Fiquei acordada por um bom tempo. Era como estar num cinema depois que as luzes se apagam, esperando os trailers. Mas não acontecia nada. Me arrependi do café. Sentia que o tormento de Reva estava ali comigo, no quarto. Era uma tristeza particular de menina que perdeu a mãe — complexa, raivosa e delicada, mas estranhamente esperançosa. Reconheci aquilo tudo, mas nada reverberava dentro de mim. A tristeza apenas flutuava no ar, ficando um pouco mais densa na granulação das sombras. A verdade bastante evidente era que Reva havia amado sua mãe de uma forma que eu nunca tinha amado a minha. Minha mãe não foi uma pessoa fácil de amar. Tenho certeza de que ela era complexa e digna de uma análise mais detida. E era linda. Mas nunca a conheci de verdade.

    “Meu ano de descanso e relaxamento”, p. 238-239 [versão eBook]

    Já a terapeuta da narradora, dra. Tuttle, é um caso à parte. Em várias passagens é impossível não rir de suas atitudes e conselhos e vê-la sendo retratada pela Emma Thompson em seus melhores papeis de comédia. O problema é que não dá para ter um comportamento tão irresponsável quando se trata de saúde, seja ela física ou mental.

    Mesmo a protagonista tem atitudes egoístas, inseguras, com traços que a aproximam de uma anti-heroína ou até mesmo de uma vilã. Enquanto lia Meu ano de descanso e relaxamento, só conseguia pensar que estava diante de uma versão feminina de Patrick Bateman, personagem do romance Psicopata americano, de Brett Easton Ellis, e interpretado por Christian Bale no filme homônimo lançado no ano 2000. Mas, apesar da narrativa ágil, que mais lembra um roteiro cinematográfico, nem tudo é tão simples na escrita de Ottessa. Ainda que ela crie uma mulher que não pede por empatia, nem nos aproxima de sua história, não dá para demonizar ou abandonar essa jovem tão rápido assim.

    Quem pode ter um ano de descanso e relaxamento?

    Claro, precisamos considerar que temos uma personagem repleta de privilégios. Ela tem uma casa, uma herança, perde o emprego sem maiores consequências. Saindo da ficção e voltando à realidade, quantos de nós podemos nos dar ao luxo de tirar alguns meses para simplesmente sumir? E pior: quantos de nós podemos ter convênio, acesso a médicos e medicamentos, tempo para descansar. Indo mais além: quantos de nós não precisamos nos preocupar com dinheiro, com um teto para viver, com comida na geladeira? Quantos de nós podemos simplesmente dormir sem culpa?

    Sim, dormir, um ato tão essencial à vida e talvez o grande vilão do capitalismo, da sua cultura de produtividade full time. Aliás, sobre esse assunto, recomendo o excelente livro de Jonathan Crary, 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. De certa forma, seria exagero dizer que a nossa protagonista é revolucionária ao apostar na reclusão do sono e não nos medicamentos e terapias que a manteriam doente, mas produtiva?

    E sem ignorar esses recortes, em nenhum momento olhei para essa mulher e pensei “do que está reclamando?”. Talvez por ter sentido na pele o desamparo e a solidão que também a marcam, foi impossível não ter, no mínimo, empatia por ela. Mas o ponto é: será que também precisamos estar no fundo do poço para ver outra pessoa e sentir compaixão? Ou será que temos que voltar nossos olhos para o que realmente está nos adoecendo e matando? Como vocês sabem, eu adoro perguntas retóricas, e 2020 mostrou que, às vezes, precisamos voltar ao óbvio.

    Eles [medicamentos] transformavam tudo, até mesmo o ódio, até mesmo o amor, em uma névoa que eu conseguia dispersar. E era exatamente isso que eu queria — minhas emoções passando como faróis de carro que brilham suavemente através de uma janela, passando por mim, iluminando algo vagamente familiar e em seguida desaparecendo, me deixando mais uma vez no escuro.

    “Meu ano de descanso e relaxamento”, p. 297 [versão eBook]

    E falando em óbvio, após terminar o livro de Ottessa, o que ficou foi uma dura constatação: parece não existir escapatória para quem tem depressão e tantas outras doenças mentais. Há inúmeros escapismos e quase nenhuma saída; é uma vigilância constante, cansativa. E há outra dura verdade: nada está sob nosso controle. Sim, vários mantras dizem isso. Pode soar reconfortante em certo momento “soltar o volante” de um carro que é desgovernado por natureza, mas não é.

    Ainda não consigo aceitar que tudo se dá ao acaso, que só posso controlar como reajo ao mundo. Quando já estamos destroçadas, tudo o que queremos e precisamos talvez seja uma certa ordem, um pouco de segurança e, quem sabe, de descanso e relaxamento. Teremos um tempo para isso?

    Compre “Meu ano de descanso e relaxamento”


    Aqui está uma playlist inspirada no meu próprio ano – só que de desespero e sobrevivência:


    Leia mais >> Um crime da solidão (Andrew Solomon): o suicídio como solução

    Share.