Um romance sobre culpa, não sobre mistério: A História Secreta, de Donna Tartt

atualizado em 12/2025

Donna Tartt já virou referência por prólogos marcantes. Em A História Secreta, porém, ela vai além: logo na segunda linha do prólogo — por meio do narrador Richard Papen — ela conta quem morrerá no livro. E saiba, querido leitor, esse “spoiler” tão cedo não é erro; é estratégia.

A maior curiosidade aqui não é descobrir quem morreu. É entender por que tudo desmorona depois daquele anúncio. A morte deixa de ser surpresa final e se torna sombra constante que paira sob cada diálogo, cada ação, cada decisão do grupo.

Capa do livro "A História Secreta" - Donna Tartt

O spoiler como artimanha narrativa

A revelação inicial parece diminuir o poder do acontecimento. Afinal, como se apegar a alguém que ainda não conhecemos? E, em um livro de aproximadamente quinhentas páginas, como sentir com força a perda de um personagem que já era anunciado?

A resposta está justamente na mudança de foco. Tartt não quer que você corra atrás de um clímax; ela quer que você acompanhe o processo de degradação que leva à morte, a guilhotina moral que corta lentamente a identidade dos personagens.

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A filosofia como presságio da tragédia

Logo no início, durante um debate, o grupo conversa sobre ego, loucura e a busca por perder o próprio ego:

Esse trecho da página 43 não é cena de enfeite; é indicador temático. O grupo busca algo além de si — talvez um ideal, talvez uma dissolução, talvez uma fuga. Mas ao tentar apagar o ego, eles acabam por radicalizá-lo, criando condições para uma tragédia que não precisa mais ser surpresa.

O leitor em labirinto de espelhos

Ao ler, surge a sensação de ambivalência: sabemos o fim, mas não temos um caminho claro até ele. É como caminhar por um labirinto de espelhos, onde cada reflexão contradiz a anterior.

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Richard Papen, o narrador, é parte do grupo, mas também observador. Ele é ponte entre o leitor e o círculo fechado — alguém tentando compreender (ou justificar) um comportamento já condenado. Essa posição frágil e ambígua gera tensão constante, mesmo sem depender de reviravoltas.

O enredo e suas costas expostas

A trama mostra seis jovens universitários que simulam um ritual bacante — e, diante do sucesso inesperado, acabam cometendo atos brutais para ocultar o ocorrido. A ideia é ousada, mas um ponto problemático aparece aqui: ao eliminar o impacto da morte como surpresa, a autora precisava oferecer personagens mais densos ou relações mais trabalhadas para segurar o leitor.

Em alguns momentos, sente-se que falha essa sustentação. Há uma preocupação constante em informar o que os personagens fazem — quem vai à aula, quem bebe, quem conversa — mas pouca profundidade no entrelaçamento emocional de todos. Alguns romances ou interações soam mecânicos, como itens de checklist, e não como desdobramentos naturais da convivência.

O ponto de luz: o personagem que realmente importa

E, apesar disso, o livro encontra seu coração em um personagem específico — aquele cuja morte é parte do anúncio inicial. É nele que surge a profundidade humana que nem todos os demais conquistam. A própria descrição sobre essa figura revela como certas pessoas são definidas não por um manifesto ou um grande discurso, mas por pequenos gestos, por breves momentos, por lembranças que brotam do nada:

“Uma personalidade assim se desintegra quando analisada. Só pode ser definida pela anedota, pelo encontro fortuito ou pela frase entreouvida…”
(p. 356)

Esse trecho mostra que, mesmo com o spoiler antecipado, a perda ainda dói. Porque a memória de alguém pode ser mais intensa do que sua própria presença. E o que os outros lembram define o personagem tanto quanto suas ações.

Culpa e desintegração: temas centrais

Então, o livro não é sobre mistério no sentido policial tradicional — é sobre culpa compartilhada, sobre como um pacto silencioso entre indivíduos produz uma ética própria, instável, frágil, insustentável. O spoiler é apenas o avisador. O verdadeiro peso está no pacto, no desespero, no recorte da identidade.

Mesmo com alguns problemas de ritmo ou de construção de personagens secundários, o romance permanece marcante pela atmosfera e pelo incômodo que causa. É um convite a olhar para como a mente humana justifica, racionaliza e se destrói.

Quem é Donna Tartt?

Foto da autora Donna Tartt. Divulgação.

Donna Tartt é uma autora de produção rara e deliberadamente lenta. Publicou poucos romances ao longo de décadas, mas cada um deles foi construído com um grau de obsessão formal que se tornou sua marca registrada. Em A História Secreta, seu livro de estreia, já aparecem temas que atravessariam toda a sua obra: a atração por grupos fechados e elitizados, o peso da culpa, a estética como forma de isolamento e a juventude como território de experimentação moral.

Tartt escreve romances longos, densos e atmosféricos, em que o enredo avança menos pela ação e mais pela pressão psicológica. Não há pressa, nem concessão ao leitor. Ler Donna Tartt é aceitar um pacto: o de permanecer dentro da tensão até que ela se torne insuportavelmente reveladora.


Onde comprar / referência de edição

Uma edição de A História Secreta pode ser encontrada em sebos e livrarias; por exemplo, há listagens de cópias em circulação no site Estante Virtual, com preço a partir de R$ 41,50 para edições usadas. Estante Virtual Essa é uma alternativa interessante quando a nova está esgotada ou mais cara.

Conheça também: O Pintassilgo, da mesma autora.

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