Assim como avisa a introdução do livro “O Sol e o Peixe” (Virginia Woolf, tradução de Tomaz Tadeu, Editora Autêntica), se prepare para a prosa repleta de poesia. Se prepare para o mergulho, o deleite, a mais bela contemplação.
E assim realmente aconteceu logo no primeiro ensaio, que leva o nome do autor francês “Montaigne”, que viveu no século XVI. Se no ensaio Virginia Woolf pergunta sobre os limites da vida e da arte, “Afinal em toda a literatura, quantas pessoas conseguiram retratar a si mesmas utilizando a pena?”, ela faz do próprio texto um exemplo belo do quanto é generosa essa mistura. E tantos autores que parecem distantes de seu próprio texto… e temos Virginia Woolf que joga cada palavra como uma isca de seu próprio ser, de sua própria natureza humana, e faz de sua arte literária a sua vida imperfeita com maestria. E o mais admirável: totalmente distante dos clichês.
O segundo artigo, “A paixão da leitura”, que foi escrito em 1931, faz conexão com o artigo “Como Se Deve Ler um Livro”, que é mais longo e detalhado, porém com diversas partes iguais no pensamento, apesar de um pouco diferentes na construção textual. Este, publicado em 1926, é como se fosse todo o pensamento dela, em detalhes e “A paixão da leitura”, uma condensação poética do mesmo.
Em “Memórias de uma filha: Leslie Stephen, o filósofo em casa”, que fecha a primeira parte chamada de “A Vida e a Arte”, temos Virginia Woolf enumerando os defeitos e as qualidades de seu pai. A cada defeito apresentado há uma melhor qualidade a qual ela explora com orgulho, o que entra um pouco em contradição com o personagem rabugento (e também controverso) Sr. Ramsay, do romance “Ao Farol”, que muitos dizem ser uma representação do pai dela. Talvez por uma maturidade, depois que o tempo passa e os nervos se acalmam, é comum a admiração e o amor pela rotina familiar e pelos membros que a compõem.
“Flanando por Londres”, que inicia a segunda parte do livro – A rua e a casa – também é um jeito de flanar pelas ideias claras e fluidas de Virginia Woolf. Tudo começa com o desejo dela que, em sua casa, decide comprar um lápis. Sim, apenas uma desculpa para passear por Londres, uma cidade tão magnífica em grandeza e também em detalhes. A fluidez do texto nos transporta para as ruas charmosas, para as pessoas de lá, as lojas e sentimentos de contemplação.
“Anoitecer em Sussex”, diferente da crônica anterior, começa na rua e termina na casa. Ela está no carro, indo para Monk’s House, talvez, e admirando a paisagem em silêncio, mas a sua mente se encontra dividida, como se ela não fosse apenas uma, mas várias pessoas, que discutem sobre pequenos assuntos do cotidiano. É gostoso, é bom, é positivo. No final o que é fica um alívio e um aconchego; um sentir-se bem de corpo e pensamento.
Para fechar a parte sobre viver lá fora e aqui dentro, temos o artigo “Sobre estar doente”, publicado pela primeira vez em 1926, que avalia a falta do tema na literatura, que fala muito mais sobre amores e guerras do que sobre doenças. Com humor e inteligência, ela coloca a doença como possível protagonista dos romances e poesias.
A última parte, “O olho e a mente”, começa com “A Pintura”, escrito em 1925, que mistura crítica e prosa poética, como todos os outros presentes no livro, porém, o termo “crítica” para esse artigo deve ser levado ao pé da letra, pois é feito dele uma fina agulha para cutucar as artes plásticas.
O impressionismo
Sabemos que Virginia Woolf admirava as pinturas porque sua irmã, Vanessa Bell, foi uma pintora impressionista, assim como podemos dizer que Virginia Woolf tem um pouco de impressionismo em suas obras literárias. Então, ela se sente confortável para criticar a postura dos pintores, ao mesmo tempo que provoca e afaga, num exercício bom de respeito e ironia com as artes em geral. A grande pergunta que fica subentendida é: deve o artista explicar sua própria arte?
Em “O cinema”, revela que Virginia Wolf tinha restrições sobre essa nova arte. Se com as plásticas ela critica, mas ama; com o cinema ela critica e espera uma revolução. Ela quer a emoção na tela de uma forma diferente. Para mostrar amor, o cinema mostra um beijo, mas deve mesmo ser assim?, pergunta. E num emaranhado de incômodos com a sétima arte, ela nos mostra que está disposta a amar, mas quer que o sentimento chegue de uma forma surpreendente, como se dissesse: “me prove que eu devo te amar”.
“O Sol e o Peixe”, o último componente, repleto de significados e metáforas. Num dia de eclipse, Virginia Woolf vai até o melhor lugar do Reino Unido para assistir “de camarote” o sol ser encoberto pela lua. Este dia traz diversas reflexões sobre a vida, a arte, a rua, a casa, o olho e a mente, trazendo novas possibilidades de interpretação para os outros artigos do livro. Brilhantemente, Tomaz Tadeu, tradutor e organizador do livro, “O sol e o peixe” não poderia não ser o último texto do conjunto, pois é ele que arranca um sorriso no final, que justifica a genialidade de Virginia Woolf. E o peixe, tão misterioso na capa e no título acaba relacionando – e engolindo mesmo – todo o livro, que entrega para o leitor uma joia linda para iluminar e desconstruir ideias e conclusões, como se tudo fizesse parte do mesmo rio que corre; que contém peixes; o sol que ilumina tudo; mas que também pode ganhar a escuridão, mesmo que por 24 segundos.