O conto A segunda vida, de Machado de Assis, é instigante por sua própria temática, o é ainda mais por tratar-se de um palimpsesto. No sentido literal, palimpsesto designa um pergaminho (ou papiro) cujo texto era raspado para permitir a reutilização, e através do qual se percebe o texto anterior. No sentido literário, é uma obra que remete a uma obra anterior. No atual estágio de nossa civilização é quase que inevitável que cada novo texto remeta a outro texto anterior. Palimpsesto é diferente da intertextualidade, pois nesta, se repetem literalmente as palavras do primeiro texto; já no palimpsesto, o que se repete é a ideia em si.
A Segunda Vida tem por trás de sua estrutura dois textos antigos: O mito de Er e a Voz do silêncio. Para entender o conto, não é necessário conhecer os textos de base, mas este conhecimento enriquece o entendimento do conto. Por isso acrescentarei um resumo deles ao final, e o leitor poderá pesquisar mais profundamente por conta própria, pois são textos bem longos.
A segunda vida começa, de maneira bem atual, pelo meio, (era inovador, nosso Machado):
“Monsenhor Caldas interrompeu a narração do desconhecido:
– Dá licença? é só um instante.
Levantou-se, foi ao interior da casa, chamou o preto velho que o servia, e disse-lhe em voz baixa:
– João, vai ali à estação de urbanos, fala da minha parte ao comandante, e pede-lhe que venha cá com um ou dois homens, para livrar-me de um sujeito doido.”
Assim, o leitor possui duas informações em A Segunda Vida: a primeira é que há um personagem supostamente doido; a segunda é que o monsenhor chamou a polícia, e isto surpreende, pois seria mais lógico, sendo a maioria dos loucos, louco mansos, chamar um médico!
Também somos logo informados de que o clérigo estava assustado:
“Monsenhor Caldas fez um gesto de assentimento, sem perder de vista a bengala que José Maria conservava atravessada sobre as pernas”.
O autor passa a palavra ao personagem louco, enquanto deixa na sombra a história do pároco, secundária ou principal cabe ao leitor decidir ao final.
Vamos ao discurso do doido, aliás, José Maria:
“Como ia dizendo a Vossa Reverendíssima, morri no dia vinte de março de 1860, às cinco horas e quarenta e três minutos da manhã. Tinha então sessenta e oito anos de idade.”
E aí A Segunda Vida nos remete ao mito de Er, pois também ao personagem do conto foi imposta a volta, e teve ele a oportunidade de escolher, e escolheu voltar como alma experiente, que se lembrasse, pois aludia ao ditado “ah, quem me dera ter aos vinte anos a experiência da velhice!“
Neste ponto, o personagem possui uma infância e adolescência insípida, permeadas pelo medo de tudo – e Machado desenvolve aí a teoria de que a inexperiência da juventude dá a vida uma certa graça e prazer próprios da ignorância das consequências. De forma engraçada, o personagem afirma recusar o amor, pois infalivelmente fracassa, ou por que alguém morre, ou por se desentenderem, ou por terem muitos filhos e passarem necessidades ou por não terem filho nenhum e se sentirem frustrados etc… O fato é que o instinto é mais forte, e o personagem casa.
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Seguem-se várias reflexões e peripécias, até chegarmos ao trecho que nos remete ao segundo texto:
“Sonhei que o Diabo lia-me o Evangelho. Chegando ao ponto em que Jesus fala dos lírios do campo, o Diabo colheu alguns e deu-mos. ..Fitei-os encantado; eram lindos como não imagina… Não lhe digo nada; no momento de os chegar ao nariz, vi sair de dentro um réptil fedorento e torpe, dei um grito, e arrojei para longe as flores”.
Ao acordar, refere o moço, “viu a mulher diante dele aflita e desgrenhada. Os olhos de Clemência eram doces, mas ele disse-lhe que os olhos doces também fazem mal.” Chega-se aqui ao clímax e ao fim do conto, para surpresa e esclarecimento do leitor:
“Neste ponto a fisionomia de José Maria estava tão transtornada que o padre, também de pé, começou a recuar, trêmulo e pálido.
“Não, miserável! não! tu não me fugirás!” bradava José Maria investindo para ele. Tinha os olhos esbugalhados, as têmporas latejantes; o padre ia recuando… recuando… Pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas e de pés.”
Acredito que aqui, ao contrário do que ocorre em Dom Casmurro, importem menos os motivos do enciumado que as ações do suspeito…
cabe ao leitor ler o conto na íntegra e decidir por si.
Anexos:
1 – O mito de Er – é narrado por Platão em A República
“Esta é a história de um guerreiro, morto na guerra, que levantou-se em sua pira e contou o que havia visto no outro mundo. Disseram-lhe que, como milésimo morto, ele deveria voltar à terra, não lhe sendo possível recusar o retorno. Dois juízes disseram-lhe que seria mensageiro entre os homens de tudo o que ali ocorria, e que prestasse atenção.
Algumas almas eram encaminhadas para reencarnar perante as moiras, deusas do destino. Após escolher como queriam renascer, eram levadas para a planície do Esquecimento. Eram advertidas: “Elegereis vós mesmas a vossa sorte, e permanecereis irrevogavelmente unidas; como a virtude não tem dono, cada uma a possuirá conforme a honre. A divindade é inocente”.
O perigo era grande; necessitava-se de discrição e conhecimento para escolher bem.
– Mesmo para a última alma que escolher haverá boa fortuna se for sensata.
Pois após escolher, a alma confronta-se com as decorr6encias da própria escolha. A primeira alma precipitou-se e optou por ser tirano; seu destino incluía devorar os próprios filhos e ser linchado por uma centena de revoltosos. Já o famoso Ulisses, com a lembrança das fadigas passadas, escolheu renascer como um homem simples.
Er foi reenviado a seu próprio corpo, ergueu os olhos para o céu, viu que era madrugada e encontrou-se sobre sua pira, de onde desceu para contar aos outros homens o que presenciara.
Assim, sabedores do que ocorre após a morte, pode o homem salvar-se de dissabores futuros, escolhendo com sabedoria.”
2 – A voz do silêncio – tradução por Helena Petrovna Blavatsky do texto tibetano “O Livro dos Preceitos de Ouro” , que relata de forma poética a evolução da alma humana.
“Na Sala da Aprendizagem, a tua Alma encontrará as flores da vida, mas debaixo de cada flor uma serpente enrolada. Se queres atravessar seguramente a segunda, não pares a aspirar o perfume das suas flores embriagantes.
O perigo desta parte da jornada da vida, é que a pessoa fique tão inebriada pelo perfume das flores que se recuse a continuar a jornada. Se fixar-se no prazer este mesmo prazer transformar-se-á em sofrimento.”
Por Sonia Regina Rocha Rodrigues
É escritora e médica, idealizou o jornal “Um Dedo de Prosa” e foi co-editora da revista literária “Chapéu-de-Sol”, que circulou em Santos/SP de 1996 a 2001. É autora dos livros de contos “Dias de Verão“, (1998), É suave a noite (2014), Coisas de médicos, poetas, doidos e afins (2014)
Em 1996, participou da fase regional do Mapa Cultural Paulista com o conto “A Auditoria”, representando a cidade de Bebedouro. Sua monografia “A Importância da Cultura Para a Formação do Cidadão” foi utilizada pelo prova do Enem em 2011. Tem um blog.