Há um ano, Shirley Jackson ganhou as telas do Netflix com uma adaptação sombria e arrepilante de sua obra A maldição da Residência Hill (The haunting of Hill house). Sua obra clássica de 1962, Sempre vivemos no castelo (We have always lived in the castle, publicada no Brasil pela Editora Suma em 2017), embora seja considerada uma espécie de romance gótico que influenciaria mestres do terror como Stephen King, e do fantástico como Neil Gaiman, não traz as assombrações e as incursões do sobrenatural de sua mais famosa obra. Em Sempre vivemos no castelo, também há morte e mortos, mas somos colocados diante de horrores mais mundanos e psicológicos.
Romance Gótico e Bildungsroman
Assim como nos romances góticos dos séculos XVIII e XIX, temos uma protagonista feminina, já que a obra é narrada por Mary Katherine Blackwood. Merricat, como é chamada por sua irmã, é uma garota de 18 anos que, já nas primeiras linhas, cativa pela intimidade sem afetos com a qual revela ao leitor os aspectos grotescos e selvagens de sua existência: gostaria de ser um lobisomem, pois os dedos médios de suas mãos são do mesmo tamanho, não gosta de se lavar, e toda sua família está morta, com exceção de sua irmã mais velha Constance e do tio Julian.
Duas notas importantes sobre a obra de Jackson já chamam a atenção. Por um lado, ela faz um trabalho fantástico de dar uma voz crível a uma protagonista adolescente, como outros grandes autores americanos faziam nessa mesma época. Basta lembrar de Holden Caulfield em O apanhador no campo de centeio (The catcher in the rye) de Salinger (1951), e Scout Finch de O sol é para todos (To kill a mockinbird) escrito por Harper Lee (1960) para que brilhe a competência destes escritores que narram suas histórias pela boca de adolescentes.
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Mas diferentemente dessas obras, o romance de Jackson não parece acompanhar o amadurecimento pessoal e psicológico da personagem a partir de sua exposição a situações difíceis. Caulfield vive afastado de sua família, submetido à educação e à solidão de um colégio interno que o coloca diante de bullying e fracassos de toda ordem, mas servem para fortalecê-lo e fazer com que interaja com membros de sua família de forma mais tolerante. Scout vive em um vilarejo às voltas com questões raciais. Ainda que nunca tenha sofrido diretamente as mazelas da discriminação, seu pai, um honrado advogado, torna-se alvo de uma sociedade racista por defender supostos criminosos negros, o que transforma a perspectiva de Scout, tornando-a mais humana e respeitosa com o diferente.
Os horrores da sociedade
Merricat também convive com as violências nada sutis de um vilarejo hostil, cujos habitantes odeiam os Blackwood desde antes das mortes na família. Suas incursões ao vilarejo duas vezes na semana, para comprar os mantimentos que alimentariam a família reduzida e para buscar os livros que ficariam eternamente na prateleira da cozinha, são recheadas de ataques passivo-agressivos, que demonstram o quanto as meninas Blackwood, antes integrantes da família mais rica e com mais posses da vila, tornaram-se alvo de humilhação e horrores.
Merricat entra na venda para comprar ovos, leite, carnes e é recebida com cochichos, risinhos e respirações entrecortadas que lhe chegam de todos os lados. Sua passagem pela cafeteria de Stella não é diferente. Bravamente, ela mantém a rotina inalterável, mas precisa se refugiar em um mundo de fantasia interior, na viagem que fará à Lua, no tratamento mais carinhoso que dará ao tio, na comida que partilhará à mesa com a irmã, para suportar a hostilidade dos homens que sentam ao seu lado para maltratá-la, ou as crianças que a perseguem entoando baladas que identificam a tragédia familiar que rodeia os Blackwood. Tudo o que Merricat deseja é caminhar sobre seus corpos mortos. E o leitor, após as primeiras páginas de contato com um ambiente sufocante de não-aceitação e intolerâncias, se vê desejando o mesmo: que a violência não velada tenha sua contrapartida em mais violência e morte.
Seguimos Merricat em seu retorno à residência dos Blackwood e aos poucos são reveladas as razões da morte do pai, da mãe, do irmão e da tia, que lançou as irmãs em uma vida de retiro e isolamento. Constance nunca é vista fora da mansão e passa seu tempo na cozinha, produzindo alimentos que serão consumidos ou guardados no porão junto com geleias e condimentos feitos por outras mulheres da família Blackwood. Julian, o tio inválido, vive em constante rememoração do dia fatal, paulatinamente perdendo a sanidade e a saúde, e impondo a Constance a prisão de lembrar diariamente do jantar maléfico.
Nossa anti-heroína gótica passa a maior parte do dia com seu gato na floresta que rodeia a casa, enterrando objetos e criando amuletos em árvores para proteger a casa de mudanças e ameaças. Mas os amuletos falham e a fortaleza Blackwood começa a ser invadida pelo exterior com a chegada de um primo desconhecido que rompe a estabilidade e o cotidiano familiar, principalmente ao se aproximar perigosamente do coração da donzela Constance.
Por que ler Sempre vivemos no castelo e conhecer seus horrores?
Sempre vivemos no castelo é um livro que não se deixa ler aos poucos. Desde o início sabemos o que nos aguarda, e temos a necessidade de desvendar a tragédia que manchou as irmãs Blackwood. Jackson deixa pistas a cada linha, mas nos faz duvidar a todo momento: sabemos realmente quem foi responsável pelas mortes? Estamos lidando com fantasmas? Ou os horrores são demasiado humanos? Qual a extensão e o limite em que se deve reagir às agressões?
Os desfechos dessa história são inesperados, mas o que a impulsa são os cantos mais obscuros da personalidade humana, que causam dano com ações que respondem à violência com mais violência; ou pela passividade daqueles que não reagem e se submetem à dominação dos violentos. Jackson põe às claras os recônditos da escuridão humana, sem julgamentos. Afinal, nossos fantasmas e os horrores a que submetemos os outros e a que somos submetidos podem ter muitas faces.
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* Imagem de capa: The dark mansion, de James Christopher Hill.