Os Noivos do Inverno é o primeiro volume da (até agora) tetralogia A passa-espelhos. Publicado no Brasil pela editora Morro Branco, com tradução de Sofia Soter, o romance é escrito por Christelle Dabos. Nascida na França, a autora é uma ex-bibliotecária que se mantém praticamente nas sombras e que usou a escrita como válvula de escape em um momento de fragilidade e doença. Como resultado, acabou criando esse que é hoje definido como um mundo híbrido entre fantasia e Belle Époque.

os noivos do inverno

Uma versão young adult de Game of Thrones

Escrito em 2012 especialmente para o Grand Prix de l’Imaginaire (um concurso de literatura juvenil), o livro, além de ganhar o prêmio, chegou a ser best seller na França. Como era de se esperar, por ser uma fantasia direcionada a um público adolescente, o título por vezes é comparado a Harry Potter, mas, a meu ver, a faixa etária e o gênero são suas únicas semelhanças.

Honesta e cabeça dura, Ophélie não se importa com as aparências. Mas, por baixo de seus óculos de aros largos e cachecol desgastado, a garota esconde poderes únicos: ela pode ler o passado dos objetos e atravessar espelhos.

A vida tranquila em Anima se transforma quando Ophélie é prometida em casamento a Thorn, herdeiro de um distante e poderoso clã. Agora ela terá que deixar para trás tudo o que conhece e seguir seu noivo até Cidade Celeste, a capital flutuante de uma gelada arca conhecida como Polo. Ali o perigo espreita em cada esquina, e não se pode confiar em ninguém. Sem se dar conta, Ophélie torna-se um peão em um jogo político mortal, capaz de mudar tudo para sempre. (Sinopse da obra)

Os Noivos do Inverno, enquanto primeira parte de uma história maior, funciona como uma introdução ao mundo que o leitor irá descobrir ao longo de várias centenas de páginas. Funcionando mais como uma versão young adult de Game of Thrones, com o diferencial de o foco narrativo ser apenas uma das personagens, a trama tem como ponto central a política e o funcionamento das sociedades de Anima e de Polo.

Um universo construído através do olhar de Ophélie

O livro é narrado em terceira pessoa por uma voz que conta para o leitor aquilo que Ophélie descobre, pensa e lembra. Assim, a construção do universo e das tramas segue as percepções da personagem principal. Um dos maiores exemplos disso é, talvez, o cachecol que desde o início marca a vestimenta da leitora. Logo em sua primeira aparição, o acessório é colocado como algo que merece a atenção do leitor; “fora do armário, a figura se resumia a um casaco velho usado, um óculos cor cinza e um longo cachecol tricolor” (p. 14). E, ao longo de algumas páginas, descobrimos que, mais do que uma simples peça de roupa, havia nele algo de animado (no sentido de vivo), “seu cachecol subiu, deslizou e se enroscou no pescoço como uma cobra” (p. 73); e, para além disso, que ele e a menina compartilhavam um passado pouco amigável, “às vezes ela esquecia que esse cachecol, que arrastava sempre atrás dela, um dia tentara estrangulá-la” (p. 75).

Deste modo, personagens e lugares são desenvolvidos conforme a percepção de uma Ophélie que, desde o primeiro momento é descrita como alguém que difere e não faz muita questão de compreender ou mesmo conhecer o próprio núcleo familiar (ou qualquer outra coisa além de seu museu e dos arquivos do padrinho). 

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A escritora Christelle Dabos. Imagem: Chloé Vollmer-Lo / Gallimard.

Narrador e protagonista fazem questão de apontar a todo momento defeitos e qualidades (ou só características) daqueles que estão a observar; a tática ajuda, então, a uma concepção que dá pouco espaço para figuras planas ao mesmo tempo que parece ser bem enviesada. E, apesar de grande parte dos olhares serem voltados para a própria menina e para Thron, seu noivo meio animalesco, demais figuras – em especial Berenilde, Roseline, Archibald e O Cavaleiro – recebem uma atenção especial.

E, exatamente por esse olhar mais individual, vilões, interesses amorosos, amizades sinceras, mentorias ou mesmo os motivos que levaram aquela sociedade a ser dividida e configurada da forma apresentada, não são facilmente delimitados nesse primeiro volume. 

Tudo o que sabemos é que Ophélie é uma jovem que tem poderes de leitura, conseguindo “ler” a história dos objetos com um toque, e que consegue atravessar espelhos que já a refletiram. Habitante de Anima, uma arca matriarcal, mas com costumes machistas e arcaicos, dirigida pelo espírito familiar Ártemis, a garota é caracterizada como a típica personagem Mary Sue (colocada de forma inferior e mesmo patética, mas que, por algum motivo, salva o dia). O narrador por vezes exagera ao colocá-la repetidamente como desastrada – mesmo que isso seja consequência de uma passagem de espelhos mal sucedida – e não muito bonita. Tendo recusado outros dois pretendentes, ela não tem outra opção além de aceitar o casamento arranjado com Thron, um homem alto, silencioso e nada simpático que mora a complicada arca de Polo, lugar hostil chefiado por Farouk e descrito como formado por ilusões. 

Um mundo em pedaços

No princípio éramos um.

Mas Deus não nos achava suficientes para satisfazê-lo, então Ele começou a nos dividir. Deus se divertia muito conosco, mas logo se cansava e nos esquecia. Deus podia ser tão cruel e indiferente que me apavorava. Deus também sabia ser carinhoso e eu o amei como nunca amei ninguém.

Acho que todos poderíamos ter vivido felizes, de certa forma, Deus, eu e o os outros, sem este livro maldito. Ele me enojava. Eu conhecia o vínculo que me ligava a ele da forma mais repugnante, mas esse horror só veio depois, muito depois. Eu não entendi na época, era ignorante demais.

Eu amava Deus, sim, mas detestava esse livro que ele abria para dizer sim e não. Deus, por sua vez, se divertia demais. Quando Deus ficava com raiva, ele escrevia. E um dia, quando Deus estava de péssimo humor, ele fez uma besteira enorme.

Deus quebrou o mundo em pedaços. (p. 10)

O livro Os Noivos do Inverno tem início com o fragmento acima e, mesmo após as mais de 400 páginas desta primeira parte da série, o leitor continua sabendo pouco sobre o que levou o mundo a colapsar. Entendemos que a humanidade foi dividida em arcas que parecem uma espécie de território flutuante e que são chefiadas por espíritos familiares imortais, que suprem a sua falta de memória registrando suas vidas em livros que, de alguma forma, mesmo eles não têm acesso. E é exatamente para descobrir os escritos de tais páginas que lutas e corridas de poder são travadas.

Feminismo e servidão

Os Noivos do Inverno tem como uma de suas principais qualidades as discussões acerca da servidão de parte dos habitantes de Polo que, observados individual e coletivamente pela mente perspicaz de Ophélie, geram discussões que podem ser repetidas no mundo em que vivemos.

Homens de casaca preta e camisa branca entraram discretamente na sala de jantar. Sem dizer uma palavra, eles levaram as sopeiras embora, serviram peixes e desapareceram em três passos. Ninguém à mesa achou necessário apresentá-los a Ophélie. […] Eram assim os empregados domésticos? Correntes de ar sem identidade? (p. 114)

Além disso, o feminismo da protagonista aparece quando esta questiona a necessidade do casamento forçado ou mesmo o fato de não ter como opção de vida uma existência simples e solitária. Apesar de tais pontos, a mãe e a irmã de Ophélie são retratadas como pessoas fúteis e sem muitas camadas exatamente por viverem uma aparente felicidade em seu destino de mulher (coisa que espero que mude ao longo da história, com uma aparente transformação e maior atenção da personagem principal).

Desaparecidos em Luz da Lua

Os Noivos do Inverno é uma obra de leitura fácil e, de uma forma que eu ainda não sei como explicar, traz uma escrita diferente (em questões técnicas mesmo) da dos outros livros juvenis que já li. Os personagens são, apesar de imperfeitos, bem carismáticos e o narrador é feliz, ainda que por vezes exagere no drama, ao brincar com a mente do leitor com mistérios e segredos que em vários momentos não são revelados.

O segundo volume da série, Desaparecidos em Luz da Lua, já foi traduzido para o português.

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