Nesta quarentena, coloquei como meta descobrir novos poetas. E assim cheguei ao nome de Lara de Lemos (1923 – 2010). Ela foi uma poeta brasileira com vasta publicação no século XX. Em sua obra, descobri questões que dialogam com o agora; com esta vida cheia de surpresas, perigos, lutas, renúncias e (re)conhecimento. Abaixo, selecionei 6 poesias de Lara de Lemos que mais me encantaram e adicionei, ao lado, alguns comentários breves sobre o que essas poesias me causaram. Em outras, não consegui escrever nada, porque, para mim, algumas poesias são impossíveis de serem transformadas em alguma explicação. É para curtir a beleza e a perplexidade que lhe atingirá!

Vida não vivida

Espero o fim da façanha.

O ocaso dos tiranos
a abolição dos mandatos
a bicicleta dos cegos
a vinda do ser biônico.

Espero o fim da patranha.

A supressão dos impostos
a queima das promissórias
a vitória nas diretas
o carnaval em agosto.

Espero o fim dos cucanhas.

Proibição das trapaças
manhãs de falas abertas
a praça para os profetas
o fim dos tecnocratas.

Espero o fim da esperança.

A vida não vivida é tudo em que podemos pensar hoje em dia. A pandemia nos coloca em um ato de introspecção; ou deveria. Assim, pensar em um Carnaval em agosto é um exercício de esperança. Mas, então, temos as trapaças, o governo e sua podridão. E, como bem escreveu Lara de Lemos, “espero o fim da esperança.”

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Penélope

No tear pequeno
teço os fios
da minha vida
teço o tédio.

No tear do tempo
teço teia in-
consistente
teço o verso.

No tear do Universo
teço o verbo
solitário
teço o poema.

No tear do medo
teço o pano
derradeiro
teço o sudário.

Penélope“, Lara de Lemos escreveu para Lígia M. Averbuck, uma professora e crítica literária de sua época. Ao ler esse poema, impossível não fixar e explorar o sentido do verbo tear; como algo que se constrói lentamente, ao mesmo tempo impõe uma certa presença ao imaginarmos aqueles grandes teares antigos. Como é tecer o tempo? O Universo? E todo esse medo em que vivemos? Nesse poema percebo uma certa coragem, como se tecer verbos e poemas afastasse o medo.


Anunciação

O verão se anuncia
nos pêssegos maduros
nos jardins perfumados
no rumor das asas
nas cigarras que cantam
como violinos desafinados.
As estações se sucedem.
Permanece apenas
o coração angustiado.

O poema “Anunciação”, foi publicado no livro “Passo em falso”, em 2006, o último trabalho de Lara de Lemos

De súbito é o susto

De súbito é o susto
estampado no rosto
refletido no espelho
parado na garganta.

Invasores transitam
pelo quarto
desrespeitam o sono
em furor incontido.
Colocam algemas
em pulsos inocentes.

Contra palavras – há muros
contra lamentos, murros.

Levam jovens na mira
de fuzis reluzentes.

A poeta Lara de Lemos vivenciou os horrores da ditadura no Brasil. No link abaixo, você pode ler um excelente artigo sobre a sua poesia e a ditadura: Lara de Lemos: o tenso rememorar da ditadura militar no Brasil


Poema de múltipla escolha – faça o seu poema

Em que tempo vivo
em que hora? de aço ( )
de água ( )
de mágoa ( )
de arma ( )

em que tempo vivo
em que hora? de faca ( )
de ferro ( )
de fúria ( )
de fuga ( )

em que tempo vivo
em que hora? de canto ( )
castigo ( )
cegueira ( )
cadeia ( )

em que tempo vivo
em que hora? de teia ( )
de muro ( )
de usura ( )
de guerra ( )

Eu gosto de poesias que causam uma maior interação com o leitor. Nesse poema de Lara de Lemos é possível refletir sobre qual é a nossa posição perante o tempo em que vivemos. Por outro lado, ler o poema já é escolher todas as opções…


Kerouac

No papel em branco da tua vista
na taça de vinho derramado
no ganho do teu nariz tresloucado
na visão estreita de alguns pares

A estrada é uma janela aberta
entre Kansas e o Chuí
pisando o pó da civilização
não preciso de putrificação

A celebração jamais vai ter fim
o fim e o meio se confundem
a volta é longa e profunda
e os teus versos estão por aí

A estrada é uma veia aberta
entre New Orleans e aqui
pisando com sapatos rotos e
esfarrapados,
na chuva abençoada por ti.

Um poema que dialoga com a cultura Beat! Kerouac é o sobrenome de um dos principais artistas de uma geração de escritores americanos que viviam à margem da sociedade. O poema se relaciona com o livro “On the road”, já comentando diversas vezes por aqui, bem como outras obras da Geração Beat.

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