De carona com Neil Peart em “Música para viagem: a trilha sonora da minha vida e do meu tempo – volume 1”

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Os especialistas afirmam que o luto tem cinco fases (negação, raiva, negociação, depressão e aceitação), que não ocorrem necessariamente nessa ordem ou tem uma duração determinada. Eu não sei dizer em que etapa estou neste ano que começou com perdas. Perda de uma parte de mim, perda de pessoas próximas – para a morte ou para a vida –, perda de tantas outras para inimigos visíveis e invisíveis, e a perda de Neil Peart.

Não o conheci pessoalmente. Na verdade, a grande maioria dos e das fãs do Rush, banda canadense da qual era baterista e principal letrista, não teve a chance de chegar perto dele por conta de sua postura mais reservada e tímida. Mas esse fato não impediu que eu sentisse e chorasse pelo seu falecimento, ocorrido no dia 7 de janeiro. Peart me mostrou o amor e o profissionalismo pela música, me encantou com a sua dedicação à escrita, me surpreendeu com sua paixão por motos, estradas e lugares. E foi justamente através da música, das palavras e das viagens que ele “saiu de sua casca” e se revelou para o mundo  –  e tem um modo melhor?

Leia mais – Neil Peart: os livros lidos pelo melhor baterista do mundo

Eu já havia lido Ghost Rider: a estrada da cura (2002), um relato muito pessoal e dolorido sobre perdas e superação. O acidente fatal de sua filha, Selena, aos 19 anos, e a morte de sua esposa, Jackie, dez meses depois do falecimento da filha do casal, o deixaram sem rumo, fora do tempo. Coube a Peart vivenciar o luto sob duas rodas, viajando por quase 90 mil quilômetros entre a América do Norte e a América Central no final da década de 1990.

E, agora, tive a chance de ler Música para Viagem: a trilha sonora da minha vida e do meu tempo – volume 1, publicado em março pela Belas Letras (casa editorial dos livros de Peart no Brasil), com tradução de Candice Soldatelli, que também é fã do Rush e já traduziu outros livros do baterista. A obra chegou às minhas mãos assim que foi lançada, com todos os mimos da pré-venda, mas algo me impediu de começar a leitura. Era como se eu ainda não estivesse preparada para lidar com as palavras de uma pessoa especial que já não estava mais aqui. Afinal, como ler as memórias de alguém que foi privado, de forma tão triste, por uma doença tão cruel (um câncer cerebral raro e agressivo), de construir novas memórias?

Alguns dias depois, finalmente abri o livro. E fiquei encantada pela diagramação (parabéns, equipe da Belas Letras) e emocionada com o poema que aparece como prefácio: Traveling Music, que acabou dando origem à música Workin’ Them Angels (Dando Trabalho aos Anjos, do álbum Snakes and Arrows, de 2007). Uma canção sobre aventuras e movimentos perigosos, ou sobre a próprio risco que é viver. Pronto, já não poderia largar Música para Viagem, mas acabei lendo em doses homeopáticas – em certa medida, não queria terminar logo, não queria me despedir do Peart de novo.

Porém, terminei. Que livro! E que lição de vida! Se em Ghost Rider, temos um homem tentando apenas sobreviver e ressignificar sua vida, em Música para Viagem, vemos Neil alguns anos depois com novos rumos, esperanças e amores. Um sopro de ar fresco. O livro e a viagem começam em 2003, em Santa Mônica, nos EUA, onde vivia com Carrie, sua segunda esposa, rumo ao Parque Big Bend, no Deserto de Chihuahua, Texas. E, enquanto nas obras passadas, como O Ciclista Mascarado (1996), Longe e Distante (2011), e a já citada Ghost Rider, pudemos pegar carona em sua moto ou bicicleta, desta vez vamos a bordo de sua BMW Z-8 conversível. Uma viagem não só pelas estradas e cenários deslumbrantes, mas pelas músicas que o acompanharam durante a jornada (tem desde Frank Sinatra até Jeff Buckley, passando por Massive Attack, Linkin Park e muita gente boa), pela vida e pelas inspirações artísticas de um dos maiores músicos da História.

Músicas que levam a memórias

Música para viagem é um livro de formação. Por ele, conhecemos as primeiras memórias de Neil Peart em Port Dalhousie (St. Catharines), em Ontário, Canadá, seus contatos iniciais com a música e, depois com a bateria – com grande influência e apoio familiar –, assim como com a literatura (Neil era um leitor voraz desde pequeno, nem as caixas de cereais escapavam), com o gosto pelas viagens e pelos automóveis, preferências que foram se fortalecendo ao longo de sua vida.

É, além disso, um livro em camadas, que demonstra a grande inteligência e sensibilidade de Neil. E mais do que isso: evidencia a sua mente curiosa, crítica, inquieta. Alguém que nunca quis parar de aprender (a passagem sobre suas aulas de bateria com Freddie Gruber mesmo após uma carreira já consolidada e aclamada como músico, e que também aparece no documentário Rush: Beyond the Lighted Stage, de 2010, só fortalece a sua busca pela maestria, algo que tem muito a nos ensinar como profissionais de qualquer área). Uma pessoa que nunca deixou de procurar por experiências – algumas um tanto perigosas, que deram aquele trabalhinho extra para os anjos.

E uma das principais camadas nessa estratigrafia da obra (para usar um termo da geologia, outra área pela qual Peart tinha grande interesse) é a música em si. Uma verdadeira aula para quem gosta do assunto e até se interessa em ser um músico, passando pelos momentos iniciais do rock’n’roll e sua simbiose com o R&B, blues, jazz, suas influências na bateria, como Buddy Rich e Gene Krupa, a chegada do The Who ao Canadá, que tanto impressionou o jovem Neil, os primeiros grandes festivais de rock, como o Festival Internacional de Música Pop de Monterey, realizado na Califórnia em 1967, e o famoso Woodstock de 1969, em Nova York. Eventos e músicas que revelaram transformações na cultura, na sociedade, e não passaram despercebidas pelo olhar atento de Neil. Olhar que também se volta com dureza a grandes nomes do ramo, como The Beatles, Elvis Presley, The Rolling Stones e, principalmente, à indústria musical, às gravadoras e afins. Nos vemos diante de um tratado em defesa da integridade artística, da liberdade dos músicos, do respeito àqueles e àquelas que tanto se dedicaram à arte, e do amor à música, enfim:

“Quando eu era adolescente, a música era tudo que existia. Recentemente, voltei ao passado e ouvi The Who Sell Out [álbum do The Who lançado em 1967], depois de 30 anos, e tudo com relação àquele álbum me lembrou de como eu era apaixonado por música – de dentro para fora, cada nota, cada compasso, cada palavra, cada som. Além das melodias e dos ritmos, as texturas sonoras reais da música causavam um efeito sobre mim que era transcendental – sensorial, emocional, cerebral e físico. Enquanto eu escutava música, era o universo inteiro para mim, e ao ouvir aquele álbum novamente senti uma conexão com o meu “eu” daquela época, o que eu amava e por que amava, e o quanto aquela música era o centro da minha própria existência. Algumas coisas foram diminuindo com o tempo, como a chegada de maior conhecimento e de mais sofisticação, mas não a lembrança daquele amor.” (p. 98)

Uma lição de vida, sem moralismos

Ler este livro num momento como o atual, marcado por tantas tragédias, mortes, caos, foi especial. Diria até que foi um tapa na cara. Ver alguém que superou perdas das mais diversas naturezas e conseguiu continuar, sem fórmulas mágicas, é sempre inspirador. Há, sim, muito sofrimento nas páginas de Música para Viagem: suas passagens sobre a filha Selena são singelas e carregadas de saudade; suas memórias de infância e adolescência, marcadas pelo bullying e pela inadequação, também mostram as dores do crescimento. Mas como não se admirar com a força das seguintes palavras?

“‘Pensando hoje enquanto eu dirigia pelo cenário majestoso no meu ‘carro dos sonhos’, a música a todo volume, como atualmente sou um cara de sorte!’ Essa certamente era uma ideia clara para mim de um modo incomum, filtrada pelas lentes da minha história recente. Pensando nesse sentimento, só posso desejar que outras pessoas tenham compartilhado isso, mesmo que raramente, mesmo que brevemente. Para todos nós, a vida é em sua maior parte uma área cinzenta, com ocasionais trechos de azul, e talvez alguns de escuridão, e os flashes de amarelo incandescente são os diamantes eternos que guardamos na memória para nos mostrar que a vida é preciosa.” (p. 219)

Sim, Neil Peart, você foi um “cara de sorte”, que viveu suas alegrias maculadas. Como escreveu na bela Bravado, uma música que, aliás, ecoou em vários momentos do livro, “we will pay the price, but we will not count the cost” (nós vamos pagar o preço, mas não levaremos em conta o custo, frase da obra The Tidewater Tales, de John Barth, lançada em 1987). Algo para se lembrar quando o fracasso parece ser a tônica dos dias e apenas queremos desistir.

Obrigada por, mesmo não estando mais por aqui, ainda permitir que possamos viajar contigo pelas músicas, pelas estradas, pelas palavras. Já estou ansiosa pelo Volume II e pelo que esta vida ainda reserva.

Ah, e como teve muita música ao longo das páginas, a Candice, tradutora do livro, organizou uma playlist baseada na obra e vale a pena apertar o play durante a leitura! E aqui você pode ler uma entrevista que o Tânios Acácio, responsável pelo Portal Rush Brasil, e eu fizemos com ela!

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