20 poesias de Paulo Leminski para encarar a realidade

A poesia de Paulo Leminski encontrou o seu tempo agora! Toda vez que abro seus livros, percebo o quanto sua linguagem se conecta com o nosso mundo. Mesmo o poeta ter vivido entre 1944 – 1989, ler Paulo Leminski é como se olhássemos em um espelho de nossa própria realidade. Pensando nisso tudo, foi um imenso prazer (re)mergulhar em suas poesias. Por isso, trago aqui 20 poesias de Paulo Leminski retiradas da coletânea “Toda poesia”.

1. Razão de ser

Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

poesias de Paulo Leminski
Em 2013, a editora Companhia das Letras lançou essa coletânea com todas as poesias de Paulo Leminski. COMPRE NA AMAZON

2. Dor Elegante

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Chegasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nesse dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra

3. A lei do quão

Deve ocorrer em breve
uma brisa que leve
um jeito de chuva
à última branca de neve.
Até lá, observe-se
a mais estrita disciplina.
A sombra máxima
pode vir da luz mínima.

4. a lua no cinema

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!

“A lua no cinema” foi publicada pela primeira vez no livro Distraídos venceremos, lançado em 1987. COMPRE NA AMAZON

5. Distâncias mínimas

um texto morcego
se guia por ecos
um texto texto cego
um eco anti anti anti antigo
um grito na parede rede rede
volta verde verde verde
com mim com com consigo
ouvir é ver se se se se se
ou se se me lhe te sigo?

Confira a resenha do livro “Vida”, uma biografia escrita por Paulo Leminski sobre Cruz e Souza, Bashô, Jesus e Trotski

6. M. de memória

Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.

7. Amor

Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.

8. (Sem título)

Quem nasce com coração?
Coração tem que ser feito.
Já tenho uma porção
Me infernizando o peito.

Com isso ninguém nasça.
Coração é coisa rara,
Coisa que a gente acha.
E é melhor encher a cara.

poesias de Paulo Leminski
Em 1983 Paulo Leminski  lançou “Caprichos e relaxos” e rapidamente o livro tornou-se um best-seller. COMPRE NA AMAZON

9. Marginal

Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.

Marginal, escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.

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10. Suprassumo da quintessência

O papel é curto.
Viver é comprido.
Oculto ou ambíguo,
tudo o que eu digo
tem ultrassentido.
Se rio de mim,
me levem a sério.
Ironia estéril?
Vai nesse ínterim,
meu inframistério.

11. Iceberg

Uma poesia ártica,
claro, é isso que desejo.
Uma prática pálida,
três versos de gelo.
Uma frase-superfície
onde vida-frase alguma
não seja mais possível.
Frase, não. Nenhuma,
Uma lira nula,
reduzida ao puro mínimo,
um piscar do espírito,
a única coisa única.
Mas falo. E, ao falar, provoco
nuvens de equívocos
(ou enxame de monólogos?).
Sim, inverno, estamos vivos.

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12. Invernáculo

Esta língua não é minha,
qualquer um percebe.
Quem sabe maldigo mentiras,
vai ver que só minto verdades.

Assim me falo, eu, mínima,
quem sabe, eu sinto, mal sabe.
Esta não é minha língua.

A língua que eu falo trava
uma canção longínqua,
a voz, além, nem palavra.

O dialeto que se usa
à margem esquerda da frase,
eis a fala que me lusa,
eu, meio, eu dentro, eu, quase.

13. Olinda Wischral

pessoas deviam poder evaporar
quando quisessem
não deixar por aí
lembranças pedaços carcaças
gotas de sangue caveiras esqueletos
e esses apertos no coração
que não me deixam dormir

14. Adminimistério

Quando o mistério chegar,
já vai me encontrar dormindo,
metade dando pro sábado,
outra metade, domingo.

Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.

Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.

Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.

Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.

Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?

Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?

Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do alfabeto?

poesias de Paulo Leminski
Livro póstumo com poesias de Paulo Leminski publicado pela editora Iluminuras em 1996. COMPRE NA AMAZON

15. Aviso aos náufragos

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta pagina, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não e assim que é a vida?

16. Passe a expressão

Esses tais artefatos
que diriam minha angústia,
tem umas que vêm fácil,
tem muitas que me custa.
Tem horas que é caco de vidro,
meses que é feito um grito,
tem horas que eu nem duvido,
tem dias que eu acredito.
Então seremos todos gênios
quando as privadas do mundo
vomitarem de volta
todos os papéis higiênicos.

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17. Volta em aberto

Ambígua volta
em torno da ambígua ida,
quantas ambiguidades
se pode cometer na vida?
Quem parte leva um jeito
de quem traz a alma torta.
Quem bate mais na porta?
Quem parte ou quem torna?

18. (Sem título)

Ainda vão me matar numa rua.
Quando descobrirem,
principalmente,
que faço parte dessa gente
que pensa que a rua
é a parte principal da cidade.

19. até mais

Até tu, matéria bruta,
até tu, madeira, massa e músculo,
vodka, fígado e soluço,
luz de vela, papel, carvão e nuvem,
pedra, carne de abacate, água de chuva,
unha, montanha, ferro em brasa,
até vocês sentem saudade,
queimadura de primeiro grau,
vontade de voltar pra casa?

Argila, esponja, mármore, borracha,
cimento, aço, vidro, vapor, pano e cartilagem,
tinta, cinza, casca de ovo, grão de areia,
primeiro dia de outono, a palavra primavera,
número cinco, o tapa na cara, a rima rica,
a vida nova, a idade média, a força velha,
até tu, minha cara matéria,
lembra quando a gente era apenas uma ideia? 

20. aço e flor

Quem nunca viu
que a flor, a faca e a fera
tanto fez como tanto faz,
e a forte flor que a faca faz
na fraca carne,
um pouco menos, um pouco mais,
quem nunca viu
a ternura que vai
no fio da lâmina samurai,
esse, nunca vai ser capaz.

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