Fui arrebato pela música inaudível da leitura de “Concerto para Milena” (Patuá, 2022). Nada mais significativo do lugar onde comecei e terminei essa leitura. Iniciei na sala de espera do aeroporto em uma madrugada gelada e finalizei na sala de espera do Hospital São Raimundo – o que foi uma das coincidências não tão coincidentes da própria vida. Talvez isso tenha dado mais sentido à história de Milena e sua mãe com E.L.A., bem como as diversas notas musicais emitidas pelas relações humanas e expostas no livro de Rafael Ruiz.

Vidas em notas

A ideia deste texto não é dar spoiler, por isso tentarei apenas tocar em alguns pontos da obra. Vou apresentar os principais personagens e minha interpretação sobre as notas que eles tocam. Mas, já antecipo, outro leitor pode encontrar outras notas, porque embora a música seja a mesma, a percepção não é.

O pai, Rodrigo, é um professor acadêmico. Ele nos lembra a sinfonia do estresse e da correria cotidiana. Uma nota que é forte, porém rápida. Tudo em uma constante instantaneidade que não cessa e atropela, porque antes de continuar a nota já parou de soar. O namorado (Ricardo) de Milena segue algo parecido. Ao conseguir o emprego dos sonhos em uma entrevista na qual ele faz uma opção de colocar o trabalho acima de tudo, o personagem persegue nessa sinfonia apressada de notas curtas do mundo do trabalho que deixa de fora a beleza do lento e complexo das músicas com notas extensas, ligadas umas as outras no grande concerto chamado vida.

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Outra personagem é Tereza, sua avó. Tereza nos mostra o concerto que Rodrigo e Ricardo deixaram de tocar. Seu concerto é o que as notas são longas, complexas, se misturam com outras e se tornam um grande som que toca a alma. O concerto de Tereza leva ao paraíso, dada a arte da contemplação.

Aurora, a enfermeira da mãe de Milena (Renata), toca as várias notas de diversas histórias e ouve a nota de Renata que é melancólica e desesperada por findar com a solidão. Aurora é uma pessoa sofisticada, alguém com experiência de vida que aprendeu a tocar suas muitas notas e ouvir as notas dos outros. Assim, é possível conectar-se e experienciar as belas melodias da arte de viver. O mais interessante é que o som dessas notas é emitido por ela pelas palavras, bem como por todos os seres humanos. Talvez seu concerto seja chamado humanização. Por fim, a relação entre Tereza e Milena lembra muito a obra de Suzana Tamaro, pois é no diálogo delas que encontramos muitas notas que perscrutam a alma.

Notas perdidas

Para terminar, depois da nossa querida tocadora de histórias, Aurora, voltamos aquela que tem seu nome estampado na capa. Milena é a personagem com que muitos de nós, que vivenciamos ou vivemos a vida acadêmica, somos. Ela está entre as muitas notas perdida e desafinada. Essa é sua melodia, aquela que precisa encontra o tom, a nota, o instrumentos e os acordes que se encaixam na sinfonia. Ela é a melodia desarmoniosa, perdida e desafinada. Mas, como todos os apreciadores de música sabem, sempre é necessário afinar e zelar por seu instrumento para que a execução da música seja boa. Por isso, é, novamente, a experiente Tereza que toca as notas da harmonia entre ela, Rebeca e Milena.

Realmente, no concerto da vida é preciso encontrar as notas corretas no compasso certo para consertar o que é necessário, do contrário o concerto é desconsertado e desarmonioso. As notas da vida serão descobertas a medida que, como Milena, buscarmos nossos instrumentos e com eles expressarmos nossas melodias. É assim que termino, de modo bem metafórico com intuito que você leia a obra “Concerto para Milena” de Rafael Ruiz, só assim você conseguirá entender melhor (ou não) todo esse papo.

Sobre o livro “Concerto para Milena”

Não sabemos, mas talvez os seus pais a chamaram de Milena porque veio junto com o tão esperado segundo milênio. Quando a conhecemos, Milena estava procurando escrever a sua dissertação, era uma das melhores alunas do Departamento de Biologia, e estava fazendo uma pesquisa de ponta, procurando encontrar algo que ajudasse na cura da doença que estava acabando com a sua mãe.

Milena tenta da melhor forma que sabe ou que pode equilibrar todos os pratos: uma mãe doente com E.L.A., um pai ausente e ensimesmado, um namorado ansioso e inseguro, uma orientadora autoritária e distante e uma dissertação de Mestrado que, aos poucos, vai deixando-a insegura e desesperada, sem saber se dará conta mesmo de tudo.

E quando parecia que tudo poderia ficar ainda pior, Milena consegue ter um relacionamento muito mais forte e carinhoso com a sua avó, Tereza, e descobre que ambas as duas tem muito em comum: sua paixão pela música e pela Literatura. E acabará encontrando em Tchaikóvsky o caminho para poder compor a sua própria sinfonia.

Sobre o autor de “Concerto para Milena”

Rafael Ruiz nasceu em Sevilla (Espanha) e pouco antes de cumprir 20 anos mudou-se para São Paulo, onde mora. Graduou-se na Faculdade de Direito da USP, onde fez mestrado em Direito internacional. Fez o doutorado em História Social, também na USP. É Professor de História da América da EFLCH da Universidade Federal de São Paulo. Coordenador do Núcleo de Estudos Ibéricos e do Laboratório de Humanidades da UNIFESP. Publicou vários livros e artigos especializados sobre História da América e sobre Literatura: “O sal da consciência. Probabilismo e Justiça no mundo ibérico”“O Espelho da América. De Thomas More a Jorge Luis Borges”“Literatura e Crise: Uma barca no meio do oceano” e “Alienação e Intolerância”.

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