Escolhi ainda na faculdade como o que seria meu primeiro contato com Jack Kerouac, “On The Road – Pé na estrada”, uma longa viagem autobiográfica que relata as aventuras do autor pelas planícies, autoestradas, bares e becos dos Estados Unidos, acompanhado de seus amigos que mais tarde passaram a ser chamados de “beats”. Durante o período em que lia, um amigo me disse: “Ok, leia este, é bacana. Mas não deixe de ler ‘Os Subterrâneos’, é incrível!”. Fiquei então com isso na cabeça: o livro considerado a “bíblia hippie” é bacana; o outro é “incrível”. Demorou mas chegou o dia em que finalmente tirei minhas conclusões.

    Talvez a principal diferença entre a primeira obra citada e Os Subterrâneos (2007, L&PM Pocket), é que em “On The Road” existe de certa forma uma história mais linear. Longos deslocamentos, paisagens, idas e vindas, ou seja, um aspecto mais físico de se contar uma narrativa. Já no segundo caso, vejo como principal enfoque a questão sentimental e o relacionamento entre o personagem principal, Leo Percepied (o próprio Kerouac), e Mardou Fox (uma moça meio índia, meio negra, pela qual o autor se apaixonou no início dos anos 50 em Nova Iorque). Escrito em três dias e três noites, no característico estilo do fluxo de pensamento ritmado, com as nuances do “jazz bebop” que está sempre presente em sua escrita, a história original ocorreu em Nova Iorque, mas pelo que se consta, foi transferida a pedido da editora para o cenário de São Francisco. Narra, além do foco principal que é o relacionamento entre os dois personagens citados, o convívio entre um grupo de amigos aos quais o autor se refere como “os subterrâneos”.

    Um ponto interessante que me veio durante a leitura, e que cabe como um parênteses na resenha, é que “os beats”, como movimento literário ou historicamente, nunca deu muito espaço à mulher (sim, um reflexo da sociedade e que não é novidade). A mulher na geração beat, em sua maioria, é vagamente citada por seu potencial artístico (como Diane di Prima), e está geralmente em casa, com filhos, esperando os consagrados autores das histórias voltarem de suas travessias, orgias, e bebedeiras. Ou seja, a mulher geralmente se sai mal, é diminuída, e tem seu coração partido.

    Mardou Fox, a personagem de “Os Subterrâneos”, é tão “da gandaia” e “da vida” quanto os personagens homens da história (nada mais justo). Seu diferencial é uma personalidade que consegue causar uma rara exceção na literatura beat: o ser masculino da história sai com o coração partido por ter recebido um basta de uma mulher que não suportou tanta imaturidade e excessos. Longe de ser o desfecho que uma mulher mereça, mas nos retratos que temos da época, poucas foram as vezes em que vi isso acontecer. Ela realmente tratou Jack Kerouac como ele já deveria ter sido tratado por muitas outras.

    “(…) – no fundo do poço escuro da noite sob as estrelas do mundo você está perdido, pobre, ninguém liga pra você, e agora você jogou fora o amor de uma mulher porque você queria tomar um trago com um arruaceiro bêbado do outro lado da tua loucura.” (pág. 132)

    Não só estes aspectos diferencias fizeram deste livro interessante. Este foi também o livro do autor em que para mim a leitura fluiu de uma maneira muito leve. Cheio de diálogos desregrados por entre as páginas, entre devaneios e narrativas recheadas de ricas descrições sobre os cenários esfumaçados, quartos escuros, becos e ruas, que são o grande charme desta literatura. E talvez agora entenda meu amigo que tratou “On The Road” como “bacana” e “Os Subterrâneos” como “incrível”. O primeiro contém todos os elementos físicos e viscerais da “beat”, enquanto o segundo, não só mantém estes elementos, como acrescenta um sentimento mais íntimo, toca mais fundo o leitor, e te prende por inteiro.

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