Durante uma subida, o corpo consome mais energia. A respiração ganha as calorias perdidas no esforço feito por pernas, panturrilhas tencionadas, uma força deslocada entre os pés e os joelhos. O coração acelera, os membros esquentam, o tronco é naturalmente inclinado para frente à procura do equilíbrio. A força se comprime na sola dos pés, os tendões parecem puxar alguma corda presa ao fim das costas, onde a inclinação termina. Músculos se enrijecem, a sôfrega troca de gás carbônico por oxigênio instila o flagelo, o tempo parece alargado por um afastador de Finochietto, que por sua vez pesa sobre os pulmões. O diafragma se expande, torna-se o salão onde a hematose vira uma dança de troca de pares. E o coração, esse instrumento de percussão que a tudo dá vida, se acalma ao encontro do corpo sobre uma área plana. Todos os músculos relaxam, o suor é uma película grudenta sobre a pele, o peito se refresca num “obrigado”. Há cansaço, há dor, mas há satisfação, um licoroso sabor de triunfo nos lábios da objetividade.
Durante a descida, a energia parece se dissipar num sopro de alívio. É verdade que há mais músculos enrijecidos, novas inclinações, mas a respiração é atenuada pela consciência do já feito, outras partes do corpo descansam; tudo depende de pés pacientes e joelhos firmes. O sucesso tende a ser quase parecido. “Quase” porque para tê-lo é preciso subir, se esforçar, e quando se chega ao topo, ao “momento de cume de montanha”, como escreveu Virginia Woolf, não se quer mais deixá-lo.
Ao contrário de uma caminhada, de um percurso em que a descida é sempre um evento reconfortante, o sucesso não pode existir se houver esta descida constante. O sucesso depende de uma infinita área plana cuja descida, o fracasso, é o retorno para o caminho pelo qual se chegou. Não se pode olhar para ele, ainda que fazê-lo traga a tangibilidade das lembranças que resultaram naquela chegada, na razão de se estar no topo. Como um corpo que também desce, o sucesso se perde no próprio ato da decadência, transformado em algo mais duro, menos aceitável, mais cansativo e finalmente entregue ao fracasso. Quando se abandonou o topo, deixando-o para quem o alcançou com menos resistência, a descida pode ser ainda mais amarga, e o retorno, incontornável. É dessa oscilação nos percursos humanos que envolvem ambição e autoestima, e quais suas consequências dentro de uma relação amorosa, que trata o “novo” romance da escritora norte-americana Lionel Shriver.
Célebre por seu comentado e bem-criticado romance epistolar “Precisamos Falar sobre o Kevin”, Lionel Shriver é o tipo de escritora que não cria personagens doces e simpáticos, que estão em busca do amor eterno ou da alienação como zona de conforto. Escrever sobre pessoas alienadas e vazias produz leitores alienados e vazios. Como sua preferência gastronômica por pratos picantes, a escrita de Lionel é igualmente condimentada: há personagens fortes, diálogos bem-construídos, uma estrutura narrativa esmerilada e por isso cortante; há política, moral, o ser humano e a sociedade não apenas revelados em sua parte envernizada, mas toda a podridão e o desbotamento por detrás desse verniz. E assim é “Dupla Falta”, romance anterior a “Kevin”, recentemente publicado pela Intrínseca com tradução de Débora Landsberg.
No jogo de tênis, uma dupla falta ocorre quando um jogador comete dois erros consecutivos, dando, assim, um ponto ao oponente. A princípio, o romance de Shriver é uma quadra virgem, com suas cores ainda fortes, sua rede recém-esticada dividindo a tensão dos primeiros tenistas, sua lhanura uma ofensa às quadras onduladas como mares de cimento. De um lado da quadra se encontra Willy Novinsky, com pouco mais de vinte anos, apaixonada pelo tênis desde os cinco, determinada e focada na ideia de que o esporte é sua razão de viver, que a vitória nasce de uma entrega completa, de uma paixão que ou se eleva ao nível da felicidade suprema, ou se estabelece acima dela. Deste mesmo lado está Eric Oberdorf, um ano mais novo, tenista pelo prazer do jogo, sem a determinação de Willy, sem o ideal de um resultado e do que ele proporcionará no futuro. Do outro lado da quadra há uma vaga a ser preenchida pelo pior fantasma de Willy: sua própria versão em decadência. Enquanto a quadra é virgem, o romance inspira a uma juventude cheia de promessas. Willy e Eric se conhecem durante um jogo em que não há plateia, só o gosto pelo treino. Apaixonados, ambos são atraídos por essa luta comum que é a busca pela estabilidade financeira num esporte tão competitivo e pelo ideal de perfeição num casamento em que as duas partes trabalham na mesma área. Afinal, como não seria maravilhoso um romance entre dois tenistas ambiciosos, que podem compartilhar suas experiências e brincar com a velocidade média de seus voleios? Lionel Shriver mostra como.
Willy, como a maioria dos personagens de Shriver, é a personificação do desagradável. Ela é uma jovem ambiciosa pela qual o leitor se apaixona de imediato, mas que logo percebe sua ambição ultrapassando o sentido mais puro de felicidade. “Ame a mim, ame meu jogo”, são suas palavras para Eric enquanto a quadra sob seus pés ainda aparenta uma duvidosa tenacidade. E essa dúvida sobre o equilíbrio do relacionamento do casal, cuja força só se intensifica na medida em que ambos sobem suas posições no ranking almejando o top 100, se alarga com o passar das páginas. Se antes ela está acima do marido, confiante por ter um treinador que a ajuda desde a adolescência, com um olho em seu backhand e outro em suas atléticas pernas sob o vestido branco à la Sharapova, Willy começa a perder o viço com a aproximação do medo de que seu marido a alcance, e, pior ainda, a ultrapasse. A competição interior de Willy é tão doentia que ela passa a questionar suas próprias habilidades. Eric passa para o outro lado da quadra quando sua classificação como tenista profissional finalmente encima a da esposa. A quadra, antes virgem, se parte em mil rachaduras, através das quais a erva daninha se espalha como o carcinoma do fracasso.
Retroativamente, o ódio de Willy pelo marido em ascensão teve sua causa tanto no fato de que ele não tem a mesma obsessão pelo tênis, a qual ela considera o único meio para o merecimento, como no fato de que ele não se esforça como ela. Esse jogo entre marido e mulher se rompe na cabeça de Willy como a erva daninha da quadra já ondulada e gasta nas extremidades. Willy é o tipo de pessoa que virou as costas para os estudos, para o que a família esperava dela, conseguindo a muito custo um lugar no mundo do tênis. Enquanto Eric, graduado e nascido em uma família rica, depende do pai, um homem mentalmente tacanho, para realizar seus maiores sonhos. É esta diferença social entre os dois que faz germinar em Willy uma incredulidade sobre seu casamento e sua felicidade no tênis.
Quando o romance parece voltado apenas para o medo de Willy e suas fraquezas, tão expostas como chagas pelas quais Eric só sente compaixão, a quadra em que ele acontece finalmente se parte junto ao tendão do joelho direito de Willy. Impossibilitada de jogar enquanto o marido viaja o mundo e sorri como se fosse o inventor do match point, a tenista vê seu mundo desmoronar pouco e pouco, e seu amor pelo tênis desbotar como as cores da quadra: “A locomotiva de Willy tinha parado na estação para uma vistoria, enquanto o vagão do marido saíra ribombando em direção ao horizonte. Só lhe restava mancar até a beira da plataforma e acenar”. Esse caráter derrotista começa a impregnar no romance como um cheiro ruim do qual é impossível se desfazer, a menos que o leitor feche o livro e esqueça a mesquinhez da personagem — coisa que eu não recomendo.
Não só Willy sente-se pior; em Eric também floresce um sentimento de culpa por ser melhor que a mulher inválida. Através dos telefonemas para ela, Lionel criou comparações que tocam o humor sádico da situação: “Quando confessou ter chegado às quartas no Bruxelas Classic, falou no tom furtivo, acanhado, de um homem que foi preso por atentado ao pudor em local público”. Para Willy, “desaparecer do ranking significa desaparecer do mundo”, e ela vai pouco a pouco desaparecendo não só de um mundo, o próprio, como de outros: o do casamento com o marido e do casamento com o tênis. Esses amores começam a apodrecer, tornam-se desamores, e o desfecho do romance, com as crises narradas magistralmente através de diálogos ácidos e sinceros, como os de Frank e April Wheeler de “Revolutionary Road”, fica próximo ao desfecho do romance de Richard Yates.
“O fracasso é um longo não aparecer, uma festa surpresa em que o convidado de honra não dá as caras”, escreveu Shriver nos últimos capítulos de “Dupla Falta”. Willy é retratada como a própria festa em que seu convidado, o sucesso, não aparece, e que por isso ela mesma não acontece — nem para si nem para o casamento, esse outro jogo em que não há profissionais.