Aceitando ou não, inevitavelmente a ficção literária possui um lastro de pretensão que muitas vezes a mantém no mesmo lugar. Por se tratar de uma arte, ela não pode ser separada de sua maior sombra: a pretensão intelectual e seu “motivo de ser”. Quando a literatura é uma ferramenta de entretenimento, esta pretensão é dissolvida, seus motivos não precisam ser questionados porque como uma boa sobremesa, ela não pede por análise, mas por uma saborosa degustação ? que pode ou não deixar sua doce mancha no canto da boca. Nem por isso ela é menor, mesmo quando categorizada.
Embora mais presente e lido nas últimas décadas, o suspense já foi uma forma narrativa desvalorizada por romancistas modernos até o século XIX. A palavra tem origem latina do verbo “suspender”, e é isso que a escritora, atriz, roteirista e tradutora Maria Clara Mattos faz em seu romance de estreia “O Céu Pode Esperar mais um Pouquinho” (Dublinense, 224 páginas): através de uma linguagem intensa e coloquial, ela suspende questões de um passado misterioso como balões perigosamente cheios, passíveis de serem rompidos unicamente pelo leitor que se entrega à atmosfera noir filigranada dessa trama policial-passional regada com doses de álcool e sexo.
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Com experiência e gosto pelos roteiros, a autora inicia o romance como poderia ser o início de um filme: “Hoje eu levei um tiro”. A sentença já indica um narrador em primeira pessoa (é possível ouvir a voz de um jovem, porém cansado, Marlon Brando ou Ryan Gosling?), e o primeiro balão é suspendido: quem deu o tiro? A partir desse mistério, a narrativa se desenvolve em mais perguntas, como ramificações que despontam da primeira. Assim como o leitor não sabe o nome do narrador, revelado na penúltima página de forma ironicamente surpreendente, ele também desconhece, num primeiro momento, as circunstâncias que levaram esse homem a construir um caráter difícil, mal-humorado, pessimista e falocêntrico. Para iniciar sua história, o tiro é também um tiro de largada: os fatos começam suas corridas, os leitores, suas apostas.
O narrador, muitas vezes uma figura que se confunde entre protagonista e antagonista, definindo-se como “cinza” e “melódico e rude” como a língua francesa, é a maior questão deste romance, ou o maior balão suspenso pela autora. Após o tiro que leva no baço, o enredo se dá através das perguntas, se inicia uma espécie de obscura anamnese dos motivos que levariam alguém a tentar matá-lo. Funcionário de uma locadora de vídeos, namorado (ou quase) de Linda, amiga de infância que conheceu na 6ª série e hoje prostituta, e ao mesmo tempo apaixonado por uma idealização romântica com sua colega de trabalho Ginger, ele se vê subitamente envolvido em um crime do qual não consegue fugir: um assassinato provocado por Linda. Com o virar das páginas, o enigma claustrofóbico se expande quando passa a ser perseguido por um detetive e pelos próprios conflitos emocionais que o desmontam. Enquanto um lado da vida afunda em desespero e dor, outro, de carência e amor familial, que com sua aparente perfeição produz um pouco de inveja nesse narrador que parece não fazer nada para mudar seu destino, aflora e tenta trazê-lo para a libertação, o melhor caminho. Muito do romance é esta encruzilhada onde escolhas estão disponíveis, à espera, embora seja fácil perceber para que lado o personagem decide ir, mesmo querendo tantas vezes voltar.
Enquanto todos os outros personagens são lentamente desconstruídos – não com respostas, mas com novas perguntas -, Maria Clara também transmite o lado irônico desse cara nebuloso cuja vida tem uma trilha sonora composta por músicas citadas a cada capítulo. A referência musical não é só forma de criar com o leitor qualquer laço afetivo ou de identificação, mas funciona como construtor do narrador e do ambiente em que ele ama e sofre. De Bee Gees, passando por Tears for Fears, The Killers, Cake, Madonna, Ray Charles, chegando a Britney Spears e muito mais, a variedade não é aleatória, mas a composição desse livro-filme ao qual lemos-assistimos com alegria e miséria. Porque, sim, há alegria em meio à dor compartilhada por tantos personagens psicologicamente estilhaçados (ou, como o próprio romance indica insistentemente, qualquer palavrão bruto que ilustre melhor os sentimentos mais sujos do ser humano); mas há muita miséria também, e ela cobre a maior parte da narrativa como uma névoa escura comprimindo o pouco ar existente entre as palavras não ditas e os instantes de pouca ou nenhuma luz.
Em uma das breves passagens em que o narrador faz autoanálises ou análises da própria vida, após um bizarro instante de violência no qual se sente tentado a cortar o pescoço de Ginger com uma faca de pão, é revelado um pouco da simplicidade deste “cara problemático”, de seu desejo de paz com tudo que lhe rodeia e atinge – por isso, embora ainda pareça uma figura perdida e triste que tira folgas da sanidade vez ou outra, consegue libertar um pouco de compaixão da narrativa:
“Se a vida pudesse ser simples assim. Se pudesse simplesmente ser uma série de absurdos, perdoados por amor e leveza de espírito e lágrimas misturadas com gargalhadas e o chão sujo da cozinha de um cara problemático que não conhece a própria história nem sabe pra onde tá indo com a própria dor. Live and let die. Live or die. Melhor.”
Ler “O Céu Pode Esperar mais um Pouquinho” é entrar no beco úmido e escuro das possibilidades humanas, é deixar-se levar pelo mistério que espreita dos cantos de uma cidade cheia de personagens bons, mesquinhos, estranhos, violentos, portanto comuns. Maria Clara Mattos tem em sua forma narrativa o poder de guiar para então soltar, deixar que o leitor se perca nos subúrbios alucinatórios da alma. Sweat dreams are made of this. Você discordaria?