Imagine o seguinte: você está lendo um livro; alguém chega e pergunta o que você está lendo; você tem boa educação e responde: Kafka; não apenas responde, mas resolve explicar alguns aspectos marcantes do texto; o livro que você está lendo não mostra um mar de rosas, muito pelo contrário; quem perguntou faz cara de medo e diz não conseguir entender por que você procura sofrimento num livro; você tenta rebater, mas desiste.

    A cena não é incomum. Muitas pessoas acreditam que a literatura deve tratar, fundamentalmente, do belo, do agradável. É a convicção de que a arte, de maneira geral, serve para esquecermos o cotidiano cinzento. Quero dizer que não desconsidero essa maneira de encarar as coisas. Cada um sabe onde o sapato aperta. O problema é transformar essa visão – uma entre muitas – em algo predominante. Sabemos, sim, que a arte é entretenimento; mas sabemos, também, que ela vai muito além desse aspecto. Não percamos isso de vista.

    Quero, aqui, dar mais uma volta no parafuso. Imagine, agora, que você está lendo um livro que não é de ficção. Pode ser um volume de memórias, pode ser biografia, pode ser diário, pode ser jornalismo, pode ser ensaio. Pode ser um monte de coisas, mas não é algo inventado; não é ficção. Alguém chega e pergunta o que você está lendo. Você tem boa educação e responde: Contos de Kolimá, de Varlam Chalámov. Você diz que os contos do livro não são inventados, mas escritos a partir da experiência do autor. Textos curtos que representam um acerto de contas do escritor com os horrores dos campos de trabalho stalinistas. Quem perguntou diz que o que você está lendo não é literatura. Pode até ser bom, mas não é literatura. Você tenta rebater, mas desiste. Não desista. Obras como as de Chalámov não merecem o silêncio aborrecido.

    Juntemos, agora, as partes: literatura que mostra os horrores da vida e literatura fundada na realidade. Esses dois elementos podem estar de mãos dadas? Podem, e vou além: algumas das obras mais marcantes dos século 20 e 21 carregam essa dupla marca: sofrimento e realidade (experiência). Exemplos de autores que assim trabalham: Primo Levi, Chalámov, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Svetlana Aleksièvitch, Graciliano Ramos, Karl Ove Knausgaard, Nathalia Guinzburg, Pedro Nava, Helena Morley etc.

    (Talvez você estranhe o nome de Graciliano na lista. Não estranhe. Sei que soará algo meio iconoclasta, mas vamos lá: dois dos melhores livros de Graciliano – Infância e Memórias do cárcere – são memorialísticas.)

    Perdoe, vou abrir mais uma trilha. Quando falamos de literatura da memória, precisamos levar em conta livros que esmiúçam um cotidiano, digamos, mais prosaico e livros que revelam experiências extremas. Faço a divisão sem ter em vista qualquer juízo de valor. Temos obras-primas nos dois grupos. Exemplos do primeiro grupo: Helena Morley e Karl Ove Knausgaard. Textos que vivem do acúmulo de pequenos desastres e de pequenas epifanias. Tom menor. Vencem a luta por pontos. Exemplos do segundo grupo: Primo Levi e Varlam Chalámov. Dois autores que viveram as duas maiores atrocidades do século 20: Auschwitz e os gúlags siberianos.

    Vocês sabe muito bem o que foi o nazismo e o que foi o stalinismo. Fica difícil imaginar algo mais atroz em termos de sofrimento e rebaixamento da dignidade humana. Levi e Chalámov voltaram do inferno e se valeram da palavra como salvação. Foram sobreviventes e elevaram a palavra a um patamar de urgência que poucos conseguiram ou conseguirão. Tratarei da prosa de Levi numa outra ocasião. Quero me deter um pouco mais nos contos de Chalámov.

    Nabokov, outro grande escritor do século 20, disse, certa vez, que, tirando um ou outro caso, a literatura russa do século 20 foi de uma pobreza extrema. Impossível concordar. Não é o caso de, aqui, elaborar uma longa lista de grandes autores russos do século 20. Concentremos nossa atenção na obra de Chalámov.

    Primeira aspecto da obra: a arquitetura. Os contos de Kolimá preenchem seis volumes. São quase duas mil páginas. O esperado seria que o material fosse transformado em romance. Mas não: o épico de Chalámov é feito a partir de flashes. Muitos dos contos do conjunto não chegam a dez páginas. Tudo é esquadrinhado. É a vida dos bandidos; é a maluquice das autoridades; é o sofrimento do sujeito que está ali por motivos absolutamente fúteis; é a árvore que se mexe de acordo com o sol; é o cachorro que vira mascote de um grupo de prisioneiros; é a burocracia insana; é o papel que não chega nunca; é a violência gratuita; é a fome; é o grito dos doentes. É a vida num lugar infernal.

    Segundo aspecto da obra: a linguagem. Vai ser difícil você encontrar um estilo mais duro e agudo. Nada pode ser desperdiçado. Não há margem para descrições poéticas. Os adjetivos aparecem nos lugares certos. Osso e musculatura. A única maneira de se narrar a vida de almas calcinadas.

    Terceiro aspecto da obra: a raiva do autor. Muitos escritores tendem a adotar uma espécie de distanciamento em relação ao que narram. Nesse aspecto, Flaubert é uma referência. Também poderíamos pensar em muitos dos escritores do Naturalismo. Cientificismo e objetividade. Frieza e ausência de envolvimento. Não é o caso de Chalámov. Em vários de seus textos, ele deixa bem claro que o que moveu sua escrita foi a raiva. É a necessidade do acerto de contas. Num dos seus textos mais fortes, ele diz que cada conto deve ser uma bofetada no stalinismo. E ele conseguiu. Eu nunca vou deixar de ficar horrorizado ao ver, em 2016, referências meio carinhosas, meio brincalhonas ao stalinismo. Há limites para a brincadeira. E há limites para a ignorância. Stálin não foi apenas um senhor de bigodão, com um sorriso meio estranho. Os contos de Chalámov devem ser lidos para não sairmos por aí bancando os otários. A vida não pode ser um eterno festival de “memes”.

    Posso dizer que a leitura dos contos de Chalámov foi uma experiência das mais impactantes. Fazia tempo que eu não sentia tamanho incômodo. Sim, incômodo. E é um elogio. Um baita elogio.

    A literatura pode ser lâmina. Eu iria além: ela deve ser lâmina.


    Nelson Fonseca Neto
    Professor de Português e Colunista de jornal. Trabalhou na editora Cosac Naify. É casado com a Patricia. Acredita que os gatos são o símbolo da perfeição.

    (texto publicado primeiramente no Jornal Cruzeiro do Sul)

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