A Hora e a vez de Augusto Matraga faz parte do livro de novelas Sagarana, de João Guimarães Rosa. A obra, escrita em 1946, revela o cenário característico do sertão, elaborado de forma primorosa pela linguagem do autor.
Há muito sobre o que pensar e investigar em A hora e a vez de Augusto Matraga, portanto, nesta resenha procurarei trazer o meu olhar como leitora durante as passagens da novela que mais me colocaram em um estado de contemplação – pela linguagem e também pela beleza e horrores da história.
Augusto Matraga, a princípio, é um homem que não respeita as pessoas que estão em sua volta de nenhuma maneira. É violento, é abusivo, é inconsequente. Mora nele todo o poder de ser um homem livre e mimado pela própria sociedade em que vive. E, logo no começo, o leitor poderá se sentir enojado por suas atitudes:
– Que é?!… Você tem perna de manuel-fonseca, uma fina e outra seca! E está que é só osso, peixe cozido sem tempero… Capim p’ra mim, com uma sombração dessas!… Vá-se embora, frango-d’água! Some daqui!
E, empurrando a rapariga, que abriu a chorar o choro mais sentido da sua vida, Nhô Augusto desceu a ladeira sozinho – uma ladeira que a gente tinha de descer quase correndo, por que era só cristal e pedra solta.
(A hora e a vez de Augusto Matraga. Sagarana. p. 367. Edição Nova Fronteira)
E diante desse começo que talvez choque muito mais hoje em dia por conta das inúmeras discussões sobre a masculinidade tóxica, pode acontecer aquele desejo de parar a leitura, pois, além desse personagem carregado de problemáticas comportamentais, a linguagem de Guimarães Rosa pode causar um certo estranhamento, mas vale a pena seguir em frente e encarar Augusto Matraga e sua vida de sertanejo. Porque, quando se está diante de um dos autores brasileiros que mais trabalharam a linguagem para refletir a realidade de tantos Brasis, é quase como um compromisso com a pluralidade de nosso povo.
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O personagem em busca da salvação
Podemos dizer que A hora e a vez de Augusto Matraga é sobre um personagem em busca de salvação. Após se mostrar em toda a sua podridão no local em que vive, ele inicia uma trajetória para se reencontrar. Ele caminha pelo interior de Minas Gerais e é acolhido por um casal de pretos que lhe mostram a importância da fé e da penitência para que, após tantas barbaridades cometidas, ele possa encontrar o caminho do céu. E acometido por todo o horror que ele mesmo provocou, Matraga se sente frágil, fraco e vê nos conselhos de seus, agora, único amigos, um motivo para viver.
“Agora, parado o pranto, a tristeza tomou conta de Nhô Augusto. Uma tristeza mansa, com muita saudade da mulher e da filha, e com um dó imenso de si mesmo. Tudo perdido! O resto, ainda podia… Mas, ter a sua família, direito, outra vez, nunca. Nem a filha… Para sempre… E era como se tivesse caído num fundo de abismo, em outro mundo distante.”
p. 378
Assim, ele se torna um homem que ajuda as pessoas na colheita e nos cuidados da vida do campo. Sem pensar muito, mas sentindo todo o peso de sua própria crueldade do passado, ele vive por anos e anos de forma pacata, enfatizando seu desejo de ser perdoado por Deus e se construindo livre de desejos por mulheres, bebidas, brigas e cigarros.
Com uma linguagem tão única e bela, Guimarães Rosa vai construindo certos laços da vida atual de Matraga com o seu passado (que o assombra tanto) como se, livre de seu comportamento bruto, não sobrasse muito dentro dele. É como se ele estivesse sendo esvaziado pela rotina da penitência em ser gentil e útil para o seu novo espaço de moradia. No entanto, certos indícios de que algo ainda está para acontecer na história de Augusto Matraga aparecem e prendem o leitor, que neste momento, exercerá seu papel empático diante às dores da personagem em busca da redenção.
Os pilares que sustentaram (e sustentam) a vida do homem branco
Curioso é que para acontecer a tão desejada salvação de Augusto Matraga, ele continua sendo sustentado por pilares muito violentos da sociedade. No início, sua esposa demonstra o desejo de perdoá-lo e exerce um papel de resignação perante o comportamento afrontoso do marido. Depois, durante a sua vida com o casal de pretos, vemos mais uma vez as pessoas que não estiveram em total igualdade e liberdade na sociedade, cuidarem e se resignarem em nome da salvação de Augusto Matraga. Ou seja, podemos dizer que a história de Guimarães Rosa é sobre uma pessoa que pode ser salva e as outras (as mulheres, os pretos) são apenas pilares para elevar o homem branco para a salvação. E se tratando do período histórico em que a obra foi escrita, não há nada novo sob o sol. E se tratando também da religiosidade presente na história do Brasil e na força do cristianismo no século XX, nada novo…
A hora e a vez de Augusto Matraga: a salvação acontece ou é tudo interpretação?
Ao caminhar para o final da história o então pacato Augusto Matraga começa a ter desejos pelos seus desejos. Volta a fumar um cigarro vez ou outra e fica admirando as armas que um forasteiro traz consigo. Dentro dele, algo ainda precisa se fechar para que ele consiga o seu perdão de Deus. Mas seja por cansaço da vida ordinária ou por instinto, Matraga encontra a sua última briga e sente que cumpriu o seu caminho. Mesmo sabendo que não teria de volta a sua antiga vida, mesmo ficando dilacerado com o que aconteceu com sua filha e amigos do passado.
De forma brilhante, o conto se fecha de forma brusca, como um disparo; e comove. A pergunta que fica é: aconteceu mesmo a redenção de Augusto Matraga? Quantas horas, quantas vezes a vida do personagem precisou de mais uma camada de compreensão existencial e não veio? E no final da história será que veio, ou a gente como leitor que entende assim por estarmos acostumados com os finais e com o perdão divino?
Nas tantas teorias da literatura e construção literária, é comum colocarem como essencial o prolongamento da última oração da história, como se fosse mais um deleite para o leitor. Mas se tratando de Guimarães Rosa, em que cada linha é a pura arte das palavras, nada é comum, nada se espera, tudo surpreende pelo ritmo e palavras certas. Nem mais, nem menos. Travessia.
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