Gilka Machado (1893 – 1980) foi uma poeta brasileira atrelada ao movimento simbolista. De postura feminista, por defender o direito das mulheres ao voto e fazer parte de grupos políticos da época, Gilka foi uma mulher à frente de seu tempo e nos deixou uma obra muito sensível e íntima. Confira abaixo uma seleção com as oito melhores poesias de Gilka Machado.

“Sonhei ser útil à humanidade. Não consegui, mas fiz versos. Estou convicta de que a poesia é tão indispensável à existência como a água, o ar, a luz, a crença, o pão e o amor.”

Gilka Machado.

1. Ser Mulher…

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor…

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…

Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

2. Saudade

De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?

De quem é esta saudade,
de quem?

Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo…

E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo…

De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?

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3. Reflexão

Há certas almas
como as borboletas,
cuja fragilidade de asas
não resiste ao mais leve contato,
que deixam ficar pedaços
pelos dedos que as tocam.

Em seu vôo de ideal,
deslumbram olhos,
atraem as vistas:
perseguem-nas,
alcançam-nas,
detem-nas,
mas, quase sempre,
por saciedade
ou piedade,
libertam-nas outra vez.

Ela, porém, não voam como dantes,
ficam vazias de si mesmas,
cheias de desalento…

Almas e borboletas,
não fosse a tentação das cousas rasas;
– o amor de néctar,
– o néctar do amor,
e pairaríamos nos cimos
seduzindo do alto,
admirando de longe!…

4. Particularidades

Muitas vezes, a sós, eu me analiso e estudo,
os meus gostos crimino e busco, em vão torcê-los;
é incrível a paixão que me absorve por tudo
quanto é sedoso, suave ao tato: a coma… Os pêlos…

Amo as noites de luar porque são de veludo,
delicio-me quando, acaso, sinto, pelos
meus frágeis membros, sobre o meu corpo desnudo
em carícias sutis, rolarem-me os cabelos.

Pela fria estação, que aos mais seres eriça,
andam-me pelo corpo espasmos repetidos,
às luvas de camurça, às boas, à pelica…

O meu tato se estende a todos os sentidos;
sou toda languidez, sonolência, preguiça,
se me quedo a fitar tapetes estendidos.

5. Olhando o mar (Gilka Machado)

Sempre que fito o mar
tenho a ilusão de achar-me diante
de um silêncio amplo, ondulante,
de um silêncio profundo,
onde vozes lutassem por gritar,
por lhe fugirem do invisível fundo.

Diante do mar eu fico triste,
nessa mudez de quem assiste
reproduções do próprio dissabor;
diante do mar eu sou um mar,
a outro de apor
e a se indeterminar.

O mar é sempre monotonia,
na calmaria
ou na tempestade.
Fujo de ti, ó mar que estrondas!
porque a tristeza que me invade
tem a continuidade
das tuas ondas…

Mas te amo, ó mar, porque minha alma e a tua
são bem iguais: ambas profundamente
sensíveis, e amplas, e espelhantes;
nelas o ambiente
atua
apenas superficialmente…

Calma de cismas, de êxtases, de sonhos,
desesperos medonhos,
ânsias de azul, de alturas…
– Longos ou rápidos instantes
em que me transfiguro, em que te transfiguras…
Nos nossos sentimentos sem represa,
nas nossas almas, quanta afinidade!
– Tu sentindo por toda a natureza!
– Eu sentindo por toda a humanidade!

Nos dias muito azuis, o meu olhar,
atento,
a descer e a se elevar,
supõe o mar um espreguiçamento
do céu e o céu um êxtase do mar.

Há nos ritmos da água
marinha uma poesia, a mais completa,
essa poesia universal da mágoa.

O mar é um cérebro em laboração,
um cérebro de poeta;
nas suas ondas, vêm e vão
pensamentos, de roldão.

O mar,
imperturbavelmente, a rolar, a rolar…
O mar… – Concluo sempre que metido
em sua profundeza e em sua vastidão:
– o mar é o corpo, é a objetivação
do espaço, do infinito.

6. Nesta ausência (Gilka Machado)

Nesta ausência que me excita,
tenho-te, à minha vontade,
numa vontade infinita…
Distância, sejas bendita!
Bendita sejas, saudade!

Teu nome lindo…Ao dizê-lo
queimo os lábios, meu amor!
– O teu nome é um setestrelo
na noite da minha dor.

Nunca digas com firmeza
que a mágoa apenas crucia:
a saudade é uma tristeza,
que nos dá tanta alegria!

Passo horas calada e queda,
a rever, a relembrar
as duas asas de seda
do teu langoroso olhar.

Se a mágoa nos não conforta,
por que é que a felicidade
tem mais sabor quando morta,
depois que se faz saudade?

7. Fecundação

Teus olhos me olham
longamente,
imperiosamente…
de dentro deles teu amor me espia.

Teus olhos me olham numa tortura
de alma que quer ser corpo,
de criação que anseia ser criatura

Tua mão contém a minha
de momento a momento:
é uma ave aflita
meu pensamento
na tua mão.

Nada me dizes,
porém entra-me a carne a pesuasão
de que teus dedos criam raízes
na minha mão.

Teu olhar abre os braços,
de longe,
à forma inquieta de meu ser;
abre os braços e enlaça-me toda a alma.

Tem teu mórbido olhar
penetrações supremas
e sinto, por senti-lo, tal prazer,
há nos meus poros tal palpitação,
que me vem a ilusão
de que se vai abrir
todo meu corpo
em poemas.

8. Odor dos manacás (Gilka Machado)

De onde vem esta voz, este fundo lamento
com vagas vibrações de violino em surdina?
De onde vem esta voz que, nas asas, o vento
me traz, na hora violácea em que o dia declina?

Esta voz vegetal, que o meu olfato atento
ouve, certo é a expansão de uma mágoa ferina,
é o odor que os manacás soltam, num desalento,
sempre que a brisa os plange e as frondes lhes inclina.

Creio, aspirando-o, ouvir, numa metempsicose,
a alma errante e infeliz de uma extinta criatura
chamar ansiosamente outra alma que a despose…

Uma alma que viveu sozinha e incompreendida,
mas que, mesmo gozando uma vida mais pura,
inda chora a ilusão frustrada noutra vida.

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