Ao realizar uma breve pesquisa sobre o tema “mulheres e literatura”, notamos de imediato que a maioria das pessoas alega ter lido poucos livros escritos por mulheres ao longo de suas vidas. Quem nunca olhou para a própria prateleira e notou a diferença? Faça o exercício e compare: quando colocada em perspectiva, a proporção entre escritores homens e autoras mulheres é desigual quando se trata do hábito de leitura.

    O fato trouxe à baila duas perguntas:

    • 1) A literatura dita “feminina” é vista como um subtipo de literatura?
    • 2) Há uma relação direta com o ensino, o modo como aprendemos e ensinamos literatura?

    Antes de refletirmos sobre as questões, levantemos alguns pontos. Atualmente, o resgate de textos escritos por mulheres busca discutir a desigualdade de gênero no mundo da literatura e promover um equilíbrio nesse sentido. Esse resgate ocorre de múltiplas formas. Dentre elas, podemos mencionar projetos como o Leia Mulheres[1], coleções como “Mulheres na Literatura”, promovida pela Folha em 2017[2], e trabalhos de editoras que trabalham especificamente com tal proposta, como a Editora Mulheres, Quintal Edições, Pipoca Press, Desdêmona, entre outras. No entanto, em pleno ano de 2019, ainda se contabiliza que 72% dos escritores publicados no país são homens[3]. Caminhamos a passos lentos.

    A desigualdade entre os gêneros

    No texto Repensando a História Literária, Ria Lemaire (1994) nos lembra que a literatura é um dos discursos de uma sociedade que se baseia na desigualdade entre os gêneros. Hoje, podemos considerar que as mulheres passaram de objeto para sujeito da literatura, no entanto, historicamente, fomos excluídas do universo da escrita, cujo domínio se deu quase que exclusivamente pelos homens. Não ter acesso à escrita significou um silenciamento ao longo dos tempos. Relegadas ao espaço privado, fomos reproduzidas pelo discurso masculino: nossos corpos, nossos desejos, nossas ideias. A alfabetização tinha fins específicos, tais como a etiqueta, e era direcionada a uma parcela restrita da população. Ser escritora, portanto, não era uma opção viável, pelo menos para a maioria. A escrita tornou-se, assim, um instrumento de poder para ampliar a distância entre universos que se tornaram excludentes: elite e povo, homens e mulheres.

    É pensando nesse contexto que a escritora inglesa Virginia Woolf afirmou que a única maneira possível para a autonomia feminina seria a conquista de um espaço próprio, onde a mulher pudesse ter a liberdade para se expressar e viver de acordo com seus desejos, trabalhar em sua realização profissional sem ter que atender às necessidades que não a sua própria. Logo, o imperativo de se ter “um teto todo seu” (WOOLF, 1985, p. 8) vincula-se não apenas ao aprimoramento de uma vocação artística, mas diz respeito à própria afirmação da mulher como sujeito de sua história.

    A complexidade da estrutura social

    Ao falarmos de literatura, contudo, nos deparamos com conceitos-chave como autor, herói, tradição e originalidade. Esses conceitos são definidos de acordo com a noção de cânone e ignoram a complexidade da estrutura social, perpetuando a ideologia presente no modelo de sociedade patriarcal. As mulheres estiveram do lado da história que não as favoreceu e o discurso literário age de acordo com a tendência masculina da justificativa do poder, dada por meio da noção de tradição. Tal conceito imprime os poderes políticos e culturais e exclui os indivíduos que não se enquadram nesse sistema construído, seja por diferentes ideias, raça, gênero ou classe. Na tradição, encontramos os perigos da história única, conforme nos elucida Chimamanda Ngozi Adichie em uma conferência homônima, proferida para o TED em 2009.

    Desse modo, ao se refletir sobre o tema mulheres e literatura, o resgate dos textos escritos por mulheres se mostra mais do que necessário, mas também se mostra mister a revisão dos conceitos e pressupostos da história literária: alterar paradigmas, nunca perdendo de vista as relações de gênero.

    Um caráter essencialmente feminino?

    Voltando à primeira pergunta: a literatura feminina é considerada um subtipo de literatura? Afinal, quem nunca ouviu a expressão “romance água com açúcar”, associado ao fato de ser um texto escrito por uma mulher? Para se tentar responder a essa pergunta, pensemos primeiro: há no texto um caráter essencialmente feminino?

    Ao refletir sobre estudos realizados por críticos sobre a poesia de Cecília Meireles e Henriquieta Lisboa, a escritora Ana Cristina César (1993) aponta, de forma um tanto jocosa, a forma como tais textos são lidos: a associação com um universo dado como “naturalmente feminino” é quase que inevitável – encontramos nos poemas de Meireles e Lisboa a elevação do ser, o sublime, o Belo, etc. E por muito tempo a poesia produzida por mulheres foi classificada dentro desse imaginário coletivo.

    Mas, o que fazer quando surgem escritoras como Hilda Hilst e Adélia Prado?  Ou a própria Ana Cristina César? Podemos associar certas escolhas estéticas a uma poesia dita “feminina”? Podemos recorrer novamente a Woolf: temos que matar o Anjo do Lar.

    Virginia Woolf explora a imagem do Anjo do Lar no ensaio intitulado Profissões para as mulheres, de 1931, fazendo uma alusão à heroína presente em um poema de Coventry Patmore (1823 – 1896) que “celebrava o amor conjugal e idealizava o papel doméstico das mulheres”.

    Em seu texto, Woolf alega que para desenvolver o trabalho como escritora ela teve que matar o fantasma do Anjo do Lar e tudo aquilo que ele representa, ou seja, o ideal da mulher pura, delicada e subserviente presente na sociedade vitoriana.

    Há que se realizar a superação da feminização desse universo imagético construído pela crítica (constituída, por muito tempo, majoritariamente por homens) pela feminização temática, ou seja, tornar o ser mulher como motivo de sua produção. E ser mulher aqui não se liga ao biológico, nem à noção de essência, mas às vivências. Assim, há que se relativizar também o conceito único de feminino, pois ele é também plural. A literatura, nesse sentido, pode se tornar o espaço para a manifestação dessa pluralidade.

    O ensino

    Com relação à segunda questão: o fato de lermos poucas mulheres é um reflexo do ensino, ou seja, o modo como aprendemos e ensinamos literatura? A resposta parece um tanto óbvia e infeliz. Ao considerarmos que o ensino, e aqui considerando mais especificamente o ensino de literatura, ainda se pauta na visão dos conceitos-chave tradicionais, como o cânone, por exemplo, e em um discurso que ainda tem como base a desigualdade gerada pela manutenção desses pressupostos, a resposta é afirmativa. Mas  é algo que podemos mudar.

    Para chegarmos nas Cecílias, Lygias e Clarices, precisamos contar histórias como as de Nísia Floresta Brasileira Augusta, que em 1832 publicou seu primeiro livro Direito das Mulheres e injustiça dos Homens, a primeira obra no Brasil a tratar dos direitos das mulheres à instrução e ao trabalho, uma tradução livre de Vindications of the Rights of Woman, de Mary Wollstonecraft. Ou sobre Josefina Álvarez de Azevedo, que questiona a construção ideológica do feminino e exige mudanças radicais na sociedade.

    Em 1878, Josefina conseguiu encenar sua peça, O voto feminino, alavancando a campanha nacional a favor do sufrágio. As histórias de Maria Firmina dos Reis, Bertha Lutz, Ercília Nogueira Cobra, Gilka Machado, Mariana Coelho, Carolina de Jesus e tantas outras. Ou mesmo a história dos inúmeros jornais publicados entre os séculos XIX e XX, os quais deram vozes às mulheres e contribuíram em sua busca pela emancipação e seus direitos, como O jornal das senhoras, O sexo feminino, O corimbo, Brasil mulher, etc.

    Pensando sobre o tema mulheres e literatura, fica a reflexão: se soubéssemos mais sobre os textos e as histórias de outras mulheres, quem sabe não conheceríamos mais sobre a nossa própria história?


    REFERÊNCIAS

    ADICHIE, C. N. O perigo da história única. 2009. 18 min. son. col. Disponível em: https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt. Acesso em: mar. 2019.

    CÉSAR, A. C. Literatura e mulher: essa palavra de luxo. In ______. Escritos no Rio. São Paulo: Brasiliense; Rio de Janeiro: UFRJ, 1993.

    DUARTE, C. L. Feminismo e literatura no Brasil. Estudos Avançados. São Paulo, v. 17, n. 49, p. 151-172, 2003.

    LEMAIRE, R. Repensando a história literária. In: HOLLANDA, H. B. de (org). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

    WOOLF, V. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

    WOOLF, V. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Porto Alegre: L&PM, 2017.

    [1] O projeto Leia Mulheres teve início em 2014, com a proposta da escritora inglesa Joanna Walsh e hoje é disseminado em mais de 100 cidades no Brasil e na cidade de Porto, em Portugal.

    [2] Sobre a coleção “Mulheres na Literatura”, apesar de ter sido alvo de críticas pelos critérios de seleção das autoras escolhidas – não ter incluído autoras negras e poucas escritoras nacionais, o que reforça o argumento deste texto sobre a questão dos pressupostos que regem nossa visão sobre literatura, reforçando noções como cânone e tradição – a ação promovida pode ser vista como uma atitude positiva em termos de iniciativa à leitura de textos escritos por mulheres.

    [3] Dados disponíveis em: https://medium.com/@labdejo2018/onde-est%C3%A3o-as-clarices-mulheres-na-literatura-brasileira-f0a9b159cbe1. Acesso em: 8 de mar. 2019.

    Imagem: Virginia Woolf, Angela Carter e Claudia Jones  / Getty Images.

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