Em tempos de crise global, mais do que nunca é necessário debatermos o que a crise significa, qual sua relação com a História e o que nos resta fazer. O texto a seguir apresenta distintas definições do termo “crise” em um comparativo entre autores, ou seja, iremos tratar da compreensão de Eric Hobsbawm e Reinhart Koselleck, objetivando demarcar pontos de convergência e limites interpretativos para obter, ou esboçar, um melhor posicionamento sobre a “crise”. Ademais, ressaltamos que o texto induz a pensar a modernidade de distintas maneiras, uma pela tradição marxista, e a outra em uma vertente mais epistemológica, servindo também como espécie de introdução para tais perspectivas.

A crise em Eric Hobsbawm

Eric Hobsbawm, em sua abordagem, incorpora princípios do marxismo em seu método historiográfico,[1] propondo uma historiografia relacionada sobretudo à materialidade, modos de produção e, principalmente, ao que nos interessa, contradições em uma determinada organização político/social que germinam uma “crise”. Uma leitura de suas análises históricas, em consequência, evidencia o modo em que, por vezes, o autor realiza um inquérito sobre elementos de uma contradição intra-sistema de uma determinada temporalidade, manifestando “crises” que se alicerçam historicamente.[2]

crise
Compre na Amazon

Em extensão, a sua interpretação sobre a Crise do Século XVII dita que desde o século XIV zonas da Europa estavam à beira do capitalismo, contudo, a estrutura feudal, seu quadro social, funcionava como um limite para os mercados, a expansão econômica.[3] Se nossa história de fato chegou ao capitalismo, o ponto de partida do autor, houve barreiras do feudalismo até sua efetiva consagração enquanto sistema político/econômico vigente.[4]  Nesse sentido, é plausível depreender que para Hobsbawm, muito além de acontecimentos singulares, a “crise” é uma categoria analítica que permite a percepção do modo em que o tempo transita, ou seja, entre forças históricas que tendem à continuidade ou à ruptura, ocasionando as mudanças na história da  humanidade.[5]

Dessa maneira, podemos inferir igualmente que a “crise”, para Hobsbawm, funciona como um mecanismo para criar novas condições históricas. Todavia, o autor não deduz um determinismo entre “crise” e mudança histórica, pelo contrário, a “crise” poderia desenhar, pelo menos segundo o que ilustra em suas pesquisas sobre o século XVII, possibilidades indiretas de solução.[6] Ao fim e ao cabo, uma solução, uma mudança histórica, ou a criação de novas condições históricas se tornou possível a partir da atuação de classes, em outros termos, um determinado relacionamento entre os grupos sociais seria coagulante para a emergência de uma revolução, enfim, as transições históricas relacionam-se tanto com a crise como também com a agência. O autor parece indicar, com essa lógica, que o protagonismo inglês em um novo colonialismo se deriva de sua maior aderência ao empresário capitalista, dado a “revolução burguesa” completa, refletindo o protagonismo de uma classe.[7]

Hobsbawm define “crise”, em suma, como uma dinâmica própria do funcionamento histórico, de modo que a “crise” é um elemento básico para visualizar padrões e mecanismos da mudança histórica. Além disso, configura a centralidade da organização político/social e da agência nesse processo, pois, enquanto marxista que é, inscreve os fatores determinantes para contradições históricas na materialidade. Na definição de Hobsbawm, portanto, “crise” é algo inerente a determinadas condições históricas, que pode variar, dependendo da organização das classes e de suas revoluções, enquanto um limite ou uma condição de possibilidade para novas eras.

Conheça: 27 livros para pensar sobre política

A crise em Reinhart Koselleck

Em partes, a “crise” em Koselleck destaca também aspectos da estrutura social. Melvin Richter e Michaela Richter indicam que “crise” é um “conceito básico” para Koselleck, ou seja, entendido como parte inescapável e insubstituível do vocabulário político/social. Em resumo, tempos de instabilidade implicam a luta semântica por definições de posição social e política, por conseguinte, o próprio instrumento conceitual que define uma instabilidade, a “crise”, está imbricado em um processo de organização político/social.[8]

Compre na Amazon

Em comum, às maneiras que Koselleck aponta para interpretar o conceito de “crise”, deduzimos que há um aspecto transitório que incide sobre o essencial de uma determinada temporalidade.[9] Entretanto, as origens e utilizações de tal conceito transmutam e, não obstante, em sua obra “Crítica e Crise”, o conceito de “crise” é introduzido, a partir da realidade do Ocidente, em estrita relação com o outro conceito, a “crítica”. Nas entrelinhas da interpretação de Jorge Grespan,[10] ambos funcionam, em última instância, como parâmetros da moralidade europeia.

Se seguirmos essa interpretação, a definição de Koselleck sobre “crise” pode ser relacionada com elementos da moral e ética que se transfiguram, conforme uma mudança na consciência dos agentes históricos, em um eixo significativo mais ou menos transcendente. De acordo com o que foi dito anteriormente, o autor certifica que esse eixo significativo pode estar em disputa e que possui implicações no processo de organização político/social, com efeito, uma transição no caráter predominante aos conflitos, prevalecendo o político perante o religioso, implicou uma consciência moral privada que se opõe às ações na esfera pública na base da forma absolutista de Estado.[11]

Essa cadeia argumentativa é apenas um recorte da contribuição de Koselleck, mesmo assim, permite elencar que a análise do conceito de “crise” é um solo fértil para compreender o florescer da modernidade;[12] justamente, auxilia na percepção de uma mudança na consciência dos agentes históricos, ocasionando em determinados parâmetros morais e formações políticas específicas, e possibilita a compreensão de uma “crise” menos transcendental. Esse processo, portanto, desloca a “crise” para o terreno das condutas éticas na materialidade, não mais divina ou natural, e nos leva ao conceito de “crise” não mais como um inevitável, mas um diagnóstico da conjuntura política moderna e, progressivamente, da economia, psicologia e a sociologia da cultura burguesa.[13]

Em suma, Koselleck em sua definição de “crise”, ao delinear o modo em que “crise” se deslocou do transcendental destino em Édipo para suas escolhas políticas, indica, por um lado, que o inevitável destino da “crise”, enquanto conceito, é possuir uma definição transitória, isto é, modifica-se historicamente; por outro lado, a “crise” moderna envolve, entre outros fatores, as raízes das estruturas políticas e a “patogênese” burguesa, de outro modo, talvez possamos compreender, em alguma medida, que a “crise” na modernidade abarca a oposição entre a ascendente moral individualista do burguês e as escolhas políticas coletivas.

Koselleck, por um lado, parece investigar uma dimensão que envolve certa psicologia coletiva, algo provocador, de um ponto de vista sociológico, mas que foge dos meios convencionais de veridicção da produção histórica, conduzida pelo método científico, e que, em sua inquisição de consciências, por exemplo, pode supor a universalização de uma cultura, moral ou política que não possui uma transcrição em elementos materiais para sua comprovação. Por outro lado, pode ser que o diferencial de sua metodologia seja, justamente, não se limitar à materialidade e conjugar um conjunto de elementos diacrônicos, mesmo assim, essa abordagem pode ocasionar um distanciamento de condições históricas específicas que engendram contradições e uma “crise” intra-sistema.

Mesmo se considerarmos que a inquisição de consciências dita sobre agentes históricos, isto é, apontarmos que Koselleck não descarta um conjunto de elementos sincrônicos incluídos em um particular processo de organização político/social, a sua existência, porém, parece ser subordinada ao plano de fundo de lutas semânticas. O que é mais interessante, em sua relação metodológica com o estruturalismo,[14] é apurar a mobilidade dessas estruturas de longo prazo na compreensão humana, a partir, pelo menos é o que aponta “Crítica e Crise”, dos agentes históricos; talvez o que mais falta a sua leitura é caracterizar melhor de que modo essa mobilidade provém dos agentes históricos. Pode ser que, relacionando ambos os autores, a mudança na consciência dos agentes históricos emerge da manifestação das contradições de uma determinada época, o que não seria um absurdo de se pensar, todavia, esse relacionamento é apenas hipotético, pois não captamos isso na leitura de ambos, pelo menos não nesses termos.

Crise material ou discursiva? Resta agir!

De todo modo, os diálogos de Koselleck abrangendo uma suposta transição entre sistemas discursivos legou um caminho para árduas investigações. Hobsbawm, por sua vez, acreditava ser a missão do historiador um desvendar do mecanismo de transição histórica,[15] e de fato observou a emergência de múltiplas transições históricas em sua vida, mas fatalmente analisa a transição a partir de suas lentes, melhor dizendo, a partir de sua conceitualização moderna. Seu método parece ser operacional para analisar toda a história da humanidade sob a óptica das contradições que pressupõem uma “crise”, contudo, sua metodologia pode estar inscrita em uma parte bem específica da história da humanidade, a modernidade.[16]

Se as disposições de Koselleck forem verdadeiras, ainda viveremos outras transições históricas, e teremos numerosas conceitualizações modernas que serão capazes de sistematizar contradições inerentes a diferentes temporalidades de um mesmo eixo significativo, todavia, pode ser que não seja facilmente perceptível a última palavra em uma transição de sistemas discursivos.  O plano de fundo em luta semântica, especialmente em tempos de instabilidade, pode ocasionar uma transição no eixo significativo da conceitualização moderna, em síntese, o inevitável da “crise” em Koselleck, a incidência do transitório nas definições, pode determinar o restabelecimento a missão dos historiadores em outro sistema discursivo. Desse ponto de vista, são “crises” em níveis, a de Hobsbawm está inscrita na de Koselleck.

Em suma, algo que os dois autores concordam, a agência humana terá partes, seja em transições dentro ou fora das disposições da modernidade, resta agir; seja em um momento em expressão de contradições históricas ou em um momento em que nossa consciência passe por uma mudança significativa, resta agir; seja qualquer definição em “crise”, resta agir.

Referências bibliográficas

GRESPAN, Jorge. HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DAS CRISES. Revista de História (São Paulo), n. 179,  a12618, 2020.

HOBSBAWM, Eric. “A crise geral da economia europeia no século XVII”. In: As Origens da Revolução Industrial. São Paulo: Global, 1979, p. 7-76.

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios (1875-1914). São Paulo: Paz e Terra, 1992.

HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Cia de Bolso, 2013.

KOSELLECK, Reinhart; RICHTER, Michaela. Crisis. Journal of the History of Ideas, 67 (2), Abr. de 2006, p. 357-400.

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.

RICHTER, Melvin; RICHTER, Michaela. Introduction: Translation of Reinhart Koselleck’s “Krise,” in Geschichtliche Grundbegriffe. Journal of the History of Ideas, 67 (2), Abr. de 2006, p. 343-356.


[1] HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Cia de Bolso, 2013.

[2] Para exemplificar, o autor analisa tanto a Crise do Século XVII por meio de contradições (1979) como também a Primeira Guerra Mundial (1992).

[3] HOBSBAWM, Eric. “A crise geral da economia europeia no século XVII”. In: As Origens da Revolução Industrial. São Paulo: Global, 1979, p. 7; p. 37.

[4] Sua preocupação com uma transição histórica, do feudalismo para o capitalismo, está em diálogo com os debates de seu contexto histórico, a transição do capitalismo para o socialismo na Guerra Fria.

[5] HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Cia de Bolso, 2013, Cap. 10 – O que os historiadores devem a Karl Marx?.

[6] HOBSBAWM, Eric. “A crise geral da economia europeia no século XVII”. In: As Origens da Revolução Industrial. São Paulo: Global, 1979, p. 53.

[7] Ibid, p. 73.

[8] RICHTER, Melvin; RICHTER, Michaela. Introduction: Translation of Reinhart Koselleck’s “Krise,” in Geschichtliche Grundbegriffe. Journal of the History of Ideas, 67 (2), Abr. de 2006, p. 345-346.

[9] Ibid, 355-356.

[10] Conceitos derivados de uma origem comum no verbo grego “krino”, que pode ser traduzido, entre outras palavras, como “julgar”, “decidir” e “sentenciar”.

[11] GRESPAN, Jorge. HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DAS CRISES. Revista de História (São Paulo), n. 179,  a12618, 2020, p. 5-6.

[12] RICHTER, Melvin; RICHTER, Michaela. Introduction: Translation of Reinhart Koselleck’s “Krise,” in Geschichtliche Grundbegriffe. Journal of the History of Ideas, 67 (2), Abr. de 2006, p. 351.

[13] GRESPAN, Jorge. HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DAS CRISES. Revista de História (São Paulo), n. 179,  a12618, 2020, p. 5-6.

[14] O autor, em nossa interpretação, detém certa relação com o estruturalismo, no sentido de que investiga sistemas discursivos que circunscrevem a humanidade em uma determinada temporalidade, estabelecendo historicidade aos próprios fatores de constituição discursiva, instâncias superior ao sujeito e à consciência, um transcendental sem sujeito, que atua como condição de possibilidade dos discursos falados por sujeitos conscientes.

[15] HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Cia de Bolso, 2013, p. 53.

[16] Pode-se perceber, nas entrelinhas do capítulo final de “Era dos Extremos”, como a concepção de Estado enquanto órgão coletivo está atualmente em confronto direto com o individualismo crescente da burguesia neoliberal, não seria essa, em partes, a dualidade que origina a modernidade para Koselleck?

Share.
Leave A Reply