Pretendemos, nesse texto, entre outras coisas, refletir um pouco sobre o livro “Educação e Emancipação” de Theodor Adorno, um livro que contém um apanhado de textos, entrevistas e conferências que possuem, em comum, a temática da educação. Com base na obra de Adorno, sugerimos maneiras de interpretar certos conceitos, conjecturando seu fio condutor, refletindo a partir do mesmo e apontando, ao nosso ver, quem é seu principal público alvo. Ademais, problematizamos o descompasso entre as advertências de Adorno e o rumo atual da educação brasileira. Em todo caso, insistimos que essa resenha não esgota o conteúdo do livro, apenas esboça alguns elementos que consideramos, em nossa leitura, centrais.

Theodor Adorno (1903-1969) foi um pensador alemão que escreveu, entre outras questões, sobre a sociedade contemporânea, mais especificamente, em “Educação e Emancipação”, o autor está focado na realidade alemã do pós II Guerra Mundial. Participou da Escola de Frankfurt e da chamada Teoria Crítica, em um ensejo de realizar análises científicas dos limites da sociedade. Embora detenha fortes relações com a sociologia, é graduado em filosofia com tese sobre Hegel e suas limitações, possuindo inspirações também em Walter Benjamin e Sigmund Freud; todavia, entre suas influências, convém, para nossa resenha sobre o livro “Educação e Emancipação”, destacar a sua proximidade com a Filosofia Ocidental e, especialmente para definir emancipação, sua aproximação com Immanuel Kant.

Educação e Emancipação
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– Definindo emancipação

Sua definição de emancipação dialoga com Kant na medida em que elege o conceito como a ultrapassagem da menoridade, que antes tornava necessário a orientação de outrem, servindo-se da coragem para obter um entendimento de modo autônomo.[1] Por esse viés teórico, a emancipação é a “a libertação do indivíduo das relações que são alheias à natureza humana, relações estas baseadas na contradição social e na heteronomia, ou seja, na sujeição de uma vontade externa” (TORRES, 2017, p. 1277). Nesse sentido, sua interpretação de emancipação pode ser vista como uma oposição a um modelo universal de entendimento, dado que o desenvolvimento emancipatório preconiza o dinamismo, um vir-a-ser, na individualidade dos sujeitos.[2]

Em termos práticos, em função de um mundo que parece levar ao homogêneo, o autor prescreve à educação uma motivação do aprendizado baseada numa oferta diversificada ao extremo.[3] Justamente, sua questão é rejeitar uma mentalidade sistêmica, ou melhor, a pretensão de captar a totalidade do real, algo que os sistemas antigos e modernos foram imbuídos de realizar, mas acabaram por expulsar da realidade e a teoria tudo o que fosse oposição à razão dominante. Na perspectiva de Adorno, devemos ser críticos em relação ao processo que poderíamos chamar de “identificante”, em um imperialismo que torna igual o desigual, sacrifica o heterogêneo em nome do homogêneo, reduz o mundo e a vida à uma lógica da unanimidade totalitária, na medida em que esse processo fundamenta o discurso e a prática da exclusão.[4]

Adorno, de acordo com o que interpretamos, detém uma complexa relação com a história do pensamento ocidental: é formado pelo mesmo e, ao mesmo tempo, é um de seus maiores críticos. Embora o pensamento ocidental seja uma base estruturante para suas obras, o autor percebe que a “grande” filosofia mantém um zelo paranóico de não tolerar nada além de si própria. Sua solução, por assim dizer, é apresentar uma filosofia dialética, mas sem sínteses. O autor se preocupa, principalmente, com os profundos desenvolvimentos de questões sociais que não possuem respostas fáceis, na medida em que são analisadas em sua verdadeira complexidade; em termos filosóficos, podemos classificar essa postura, a qual apenas tangenciamos de maneira simplista, como um teórico de uma ontologia subjetivista – não reconhecendo síntese, mediação ou conciliação.[5]

Se essa postura é radical, é necessário considerar o ambiente de Adorno: a mais trágica manifestação da barbárie de todos os tempos. Depois de Hitler, pouco importa compreender a realidade via a transcendência ou imanência, a questão, o imperativo, é que devemos organizar a ação social e o pensar para que Auschwitz não se repita. E é nesse sentido que devemos refletir sobre a educação, isto é, a educação emancipatória é a base para compreender a realidade de forma não fascista e precisa ser entendida em sua complexidade.

A definição de emancipação, a qual acreditamos ser fundamental para o livro, se torna instrumento para repensar os moldes da educação e o atual funcionamento social, na medida em que para existir uma educação emancipatória é necessário uma sociedade livre, o que o autor avalia não ser o caso de uma sociedade na qual a educação detém relacionamento inerente com a disposição desigual entre classes.[6] Por extensão, podemos sintetizar que a operacionalidade da educação, no que o autor chama de mundo administrado, é estabelecer aos sujeitos uma circunscrição do entendimento e do próprio relacionamento com o entendimento, não educando para a emancipação e autonomia.[7] De modo mais profundo, talvez isso seja, afinal, um mecanismo para manter a legitimidade de um governo, assim sendo, fabricando barreiras contra a emancipação.[8]

Por consequência, se uma democracia pressupõe uma emancipação,[9] seria lógico que, para Adorno, não vivemos em uma democracia, ou melhor, vivemos em uma democracia limitada. Há direitos políticos, mas há também forças externas que geram incapacidade de compreender a verdadeira realidade e suas causas, ou seja, mesmo que a educação provoque resistência e contradição, a educação se limitará a formar sujeitos críticos numa sociedade em que ainda prevalecerão as condições materiais que geraram a barbárie.[10]

 O autor aponta tendências de autoridade em nosso modelo social, não obstante, o conceito de autoridade adquire seu significado específico no âmbito do contexto social que se apresenta.[11] Embora possamos traçar uma oposição direta entre autoritarismo e democracia, Adorno adverte que o mesmo não acontece com emancipação e autoridade. Em vertente de inspiração freudiana, a autoridade é quem viabiliza a própria identidade dos sujeitos,[12] caracterizando-se uma ambivalência no processo de desenvolvimento do indivíduo, exemplificado na autoridade paterna, todavia, é simbólico que a emancipação, para Adorno, está no momento em que a figura paterna deixa de corresponder a um ideal.

De maneira esquemática, talvez não seja possível, se assumirmos como verdade essas necessidades psicológicas, nos desvincularmos da autoridade por completo. Ainda assim, de maneira geral, há dois caminhos possíveis: continuamos com o idealismo, próprio da condição de menoridade e do autoritarismo, ou rompemos com o idealismo, em direção à emancipação e, por consequência, à democracia.

Enfim, Adorno defende que indivíduos que afirmem sua singularidade no mundo concreto mediante autonomia, seja no que tange o entendimento ou no que tange seu desenvolvimento, em uma existência que se torna crítica diante de um ideal previamente estabelecido de pensamento ou agência, isto é, uma existência com livre-arbítrio para, em uma multiplicidade, definir a si própria e qual seu desígnio. O procedimento essencial, contra uma existência regida por suas próprias determinações, é a organização social, ocasionando o desvio de si mesma em sua consciência.[13] O despertar da consciência, segundo o que o autor esboça, está relacionado ao processo de retomar para si o próprio destino. Para além de uma ideologia unilateral, a consciência verdadeira emerge de uma crítica imanente, como um ponto de fuga do que é possível.[14]

Devemos pontuar, por agora, que a sua definição de emancipação é uma boa pista para entender o livro de Adorno, embora seja necessário entender tal conceito no significado específico do autor e, ademais, seja necessário entender que não é um conceito isolado, ou seja, dialoga com o conjunto do projeto conceitual adorniano. Ao nosso ver, sua definição de emancipação precisa de sua antítese, sua oposição lógica, que é, grosso modo, a alienação.

– Sobre a alienação

De maneira geral, é importante enfatizar que Adorno não trata de tais assuntos de maneira abstrata, segue uma ideia importante da obra que, ao que nos aparenta, é a influência de um funcionamento do trabalho. Em detalhes, logo na introdução de seu livro “Educação e Emancipação”, dispõe, esquematicamente, escritos sobre a cultura e nos parece central que o autor investiga o processo que diz sobre o posicionamento do indivíduo em relação ao propósito da cultura, ou seja, esse posicionamento sofre alterações, objetivas e subjetivas, via determinadas relações sociais. Ao fim e ao cabo, Adorno percebe que no contemporâneo a articulação para uma consciência plena deixa de advir dos princípios de racionalidade humana para se apresentarem enquanto produção e reprodução dos termos do trabalho social.[15]

Nesse sentido, diante do que Adorno entende de Lukács, é enfatizado as deformações que surgem por conta do trabalho alienado e alienante regido pela acumulação do capital, ou seja, faz parte do modo a qual nossa sociedade instrumentaliza o trabalho, via processos de alienação, a oposição à formação cultural, à bildung, à consciência plena.[16] A oposição se fundamenta ao passo que para a formação cultural, no geral, não há disposição de hábitos adequados, ou melhor, não se opera a formação cultural mediante uma finalidade, um esforço utilitário para a “aprendizagem” ou para o trabalho, é uma questão de sentimentos a serem livremente relacionados e apropriados de modo produtivo na consciência, sobretudo, em um princípio não-utilitário. Em uma frase, a formação cultural não se constitui como um resultado fixo que os candidatos devem adquirir.[17] 

Em uma crítica, para Adorno, de fato, com fortes influências do idealismo transcendental kantiano, a educação é entendida com a produção de consciência e esclarecimento, em uma lógica de autonomia que se revela no esclarecimento do ser, no campo individual do sujeito. Dessa maneira, a educação deveria funcionar para criar indivíduos críticos e resistentes, contudo, isso seria suficiente?

Marx e Engels consideram que uma nova sociedade só seria possível via distinção econômica, via liberdade da classe proletária, via fim da privatização dos meios de produção, via fim da exploração humana cometida pelo capitalismo. O conjunto dos autores, de vertente marxista, concordam que há uma interferência no desenvolvimento do indivíduo, na medida em que o capital almeja a manutenção da desigualdade entre as classes; ainda mais, a necessidade de refletir é um elemento comum para Marx, Engels e Adorno, na medida em que percebem a crítica como um elemento unificador para prospecção de uma sociedade emancipada.[18] Entretanto, para Marx e Engels o projeto educacional está diretamente ligado a um projeto social revolucionário, visto que seres humanos com práxis transformam a realidade, e o mundo precisa ser transformado, não contemplado. Em resumo, na perspectiva de Marx, somente uma transformação radical na estrutura econômico-social por meio de uma revolução geral seria capaz de dissolver as velhas relações sociais desiguais.[19]

Se a ideia central do livro de Adorno é adentrar nas complexidades inerentes ao funcionamento da educação no mundo contemporâneo, devemos sublinhar que Adorno, de fato, entendia que o propósito da educação deveria ser formar individualidades que são capazes de se desvincular da hegemonia vigente, na medida em que almejava uma emancipação, mas sem descartar uma formação que preconize uma utilidade social, uma instrução que explique sobre o mundo; assim sendo, há uma efetiva contradição, entre originalidade e função na sociedade, ressaltando um paradoxo que não aparenta ter solução, no máximo pode ser conscientizado.[20]

De modo sintético, Adorno traça a raiz do propósito educacional em discussões sobre o plano subjacente à educação formal do eu, nesses termos, a educação não deveria se limitar à proposta de criar indivíduos que se conformem com o status quo do mundo.[21] Nessa proposta, Adorno realiza uma exigência de que a educação, não obstante sua função de fornecer um “óculos” para pessoas enxergarem a imagem de um determinado mundo, deve perseguir maneiras a qual essas pessoas teriam postura crítica a esse mundo, captando o movimento desse mundo para além do estático-imagético, em um horizonte histórico para além do estabelecido, discursado ou visível.

Ao que tudo indica, Adorno entende um processo dialético na educação, posto que, por um lado, a educação é um instrumento para refletir sobre o desvanecer das condições de possibilidade estabelecidas, para desenvolvimento de, em termos filosóficos, um lugar de negatividade; por outro lado, a educação também deve operacionalizar uma compreensão de mundo, um periscópio das condições de possibilidade estabelecidas, em sentido positivo. Em alguma medida, parece que a educação contemporânea não segue mais esse processo dialético, o conjunto da estrutura educacional é influenciado por pressões do mundo administrado, um modelo de governo contemporâneo que, em suas tendências ao global, transforma a educação.[22]

A educação, assim como a sociedade como um todo, sofre com a criação de um gigantesco aparato da indústria cultural. Em uma de suas faces, ela funciona como um instrumento de manipulação de consciências, usada para conservar, manter e submeter indivíduos. A sua operacionalidade, o imperativo de uma sociedade tecnológica, é adaptação: o homem deve se adaptar, sem reflexões, a uma mentalidade comum. Em uma frase, mediante a ideologia da indústria cultural, a adaptação toma o lugar da consciência.[23] É perceptível que estamos, culturalmente, em um estado crítico, pois, como a condição de possibilidade de uma crise humanitária é a não-reflexão, a falta de consciência, e, como a indústria cultural impera em nosso contemporâneo, em uma lógica de mercantilização da realidade, vivemos cercados por tendências imanentes: o impulso de destruição, a crueldade incoerente, a barbárie.

Nesses termos, superar a barbárie é decisivo para a sobrevivência humana. E, por mais que entenda-se um processo dialético na educação, devemos enfatizar que, para Adorno, a desbarbarização é a finalidade mais premente da educação. A educação deve evitar que a barbárie se repita, permitindo a consolidação de uma democracia em que os indivíduos possam ser capazes de refletir sobre a realidade, livre de determinações externas. O autor mantém sua proximidade com Kant nesse sentido, e ressalta a ideia de que a educação não seria somente uma transmissão de conhecimentos, mas sim um esforço para construção de consciências verdadeiras, libertos da alienação imposta pela ordem econômica vigente, base para uma democracia efetiva.[24] A alienação, portanto, é um estado de insuficiência crítica, cabendo a nós realizar um esforço contra o seu domínio e desdobramento, nomeadamente, a barbárie.

Uma forte crítica no livro, assim sendo, é a precarização dos alunos em um estado intelectual que parte de um pressuposto utilitarista, melhor dizendo, pressupõe a finalidade alienadora necessária para a concepção de trabalho nas atuais sociedades, corroendo a formação cultural para longe da consciência plena.[25] Um indivíduo com consciência plena, portanto, seria emancipado de uma série de elementos e concepções que um funcionamento social industrializado prescreve. Todavia, Adorno não dá uma fórmula para a revolução; não prescreve um remédio fácil para a doença. Assim sendo, em que medida essas advertências são válidas? O que esse livro pode nos ensinar? A quem interessa as conclusões desse filósofo alemão?

– Para os que resistem!

Podemos aprofundar tais problemáticas: esse fenômeno de deformação dos indivíduos é algo próprio da temporalidade de Adorno ou se é algo inerente ao funcionamento da educação. Devemos considerar, mesmo que exista verdade nas constatações de Adorno, se o modelo escolar universalizante incentiva, detém condições e visa a consciência plena. Essa questão, em partes, é um tema tratado por José Gimeno Sacristán.[26]

Sacristán aborda os desafios da educação obrigatória, enquanto direito universal, em relação com uma diversidade de sujeitos singulares. O ponto de Sacristán é a contradição de uma educação que encarrega-se, ao mesmo tempo, de uma socialização homogeneizadora e de diferenciações individualizadoras. O autor constata que a diversidade deveria ser estimulada, entretanto, o funcionamento dominante da escola organiza a desigualdade e define exclusões, obtendo um fracasso ao operacionalizar uma população de diferentes ritmos, heterogênea do ponto de vista psicológico, social e cultural.

Com o que foi pontuado de Sacristán, pretendemos enfatizar que, historicamente, a escola não tem como finalidade a consciência plena, na verdade, a consciência plena se torna um elemento de oposição em relação ao propósito universalizante das escolas, ou, pelo menos, ao propósito universalizante que foi concebido nas escolas ocidentais em nossa experiência histórica. Assim sendo, gostaríamos de manifestar algo que aparenta ser implícito ao processo histórico: o relacionamento entre certa concepção de ensino universal e o desenvolvimento de certa concepção de trabalho. Adorno parece concordar com tais constatações, pois indica que a escola detém certa autonomia em relação com a sociedade, ou melhor, a escola mantém se em um processo dialético em relação à sociedade: ela dita materialidades alternativas e, ao mesmo tempo, dita sobre o funcionamento da materialidade predominante.

Ressaltamos que de forma alguma o professor soluciona o problema político-econômico que é alicerce para o trabalho alienante, todavia, em termos práticos, sua atuação é um importante elemento para disputar a formação de consciências dentro de uma instituição que, historicamente, não detém como finalidade principal a emancipação. Na prática, o educador é capaz de programar conteúdos diversificados, responsabilizando-se pelo desenvolvimento, em diferentes alunos, de capacidades singulares que possuem a cada momento. O professor precisa ensinar com procedimentos que tornam viável formas de entendimento heterogêneas, condição para a materialização de uma diversidade que não pode ser anulada, classificada ou transcendida.[27] Em certo sentido, portanto, um ensino democrático exige uma atuação prática.

Assim sendo, educadores devem lutar para que a educação não perca a capacidade de conscientizar contradições, não pare de atuar no intuito de remontar um mundo para além do estabelecido, sobretudo, não se esqueça de seu propósito maior: emancipar a humanidade de seu destino dado as condições materiais estabelecidas, em uma frase, não deixar que a humanidade fique presa em um propósito. Ao que interpretamos, a principal função de um educador, na percepção de Adorno, é resistir; o professor precisa ser síntese em meio a um processo dialético próprio da educação, que envolve a emancipação, alienação e resistência.

Adorno coloca em pauta a possibilidade de uma educação direcionada para a resistência. Nesse sentido, Adorno alerta que uma educação pautada pela insensibilidade, melhor dizendo, pelo autoritarismo, resultaria na continuidade da barbárie. Torna-se necessário um ensino que incentive a conquista da autonomia, incentive agir de forma heterônoma, não curvando-se diante de normas e compromissos de obediência cegamente. Torna-se necessário tratar criticamente a política, afirmando a democracia por meio de auto-análise, por meio da diferença, por meio da emancipação.[28]

Em suma, o livro abre uma porta para problematizar em que direção pesquisadores e educadores desejam caminhar. A formação integral de um sujeito deve permitir o desenvolvimento de múltiplas capacidades, sobretudo, alcançar a capacidade crítica no que diz sobre nosso modo de produção. Para além de uma aparência, os trabalhadores do setor educacional precisam agir como educadores e militares, em prol de uma sociedade, em sua essência, liberta de tais bárbaras amarras.[29]

Conforme exposto, concluímos que é um livro ótimo para todos, mas em especial para entender os professores, e principalmente para reconhecer a luta dos professores que estão abertos à reflexão crítica sobre questões complexas e à promoção de estratégias de inclusão nas tradições pedagógicas.[30] É um livro “(…) [para] que os futuros professores tenham uma luz quanto ao que eles próprios fazem, em vez de se manterem desprovidos de conceitos em relação à sua atividade” (ADORNO, 1985, p. 74).

– A resistência no Brasil…

            Ainda assim, Adorno não é autor de sínteses, é mais interessado na complexidade do processo dialético. Nesse princípio metodológico, precisamos contrastar a resistência dos professores com as suas condições materiais. Um professor da rede pública de São Paulo, por exemplo, precisa trabalhar conforme uma série de condições estabelecidas por órgãos governamentais. Hoje, Brasil 2024, o campo de atuação de um professor se restringe ao ensino tecnocrata. O professor poderia, conforme exposto, atuar como um importante agente da difusão do pensamento crítico, como um dos pilares sociais contra a barbárie, contudo, em nossa realidade, a finalidade dos currículos nacionais é marcada por referências culturais, relações de poder e disciplinas ordenadoras que dialogam com a finalidade do capitalismo.[31]

Apenas para contextualizar um aspecto da questão, e longe de esgotar as problemáticas, devemos pontuar que, no Brasil contemporâneo, o debate sobre o currículo nacional resultou em uma proposta que propunha dissolver as disciplinas em quatro áreas do conhecimento, com suposta garantia de interdisciplinaridade, estruturado em dualidade entre bases nacionais comuns e por temas transversais ou genéricos (matérias de empreendedorismo), perdendo a relação docente/conhecimento acadêmico ao privilegiar áreas do conhecimento estabelecidas pelo currículo do médio, onde qualquer introdução de conteúdo no currículo só ocorreria com autorização do MEC; por consequência, não há mais necessidade de debates pedagógicos envolvendo a posição do professor como um mediador do conteúdo, um participante ativo da formação cultural dos alunos, em suma, não precisamos mais de discussões sobre transposição didática ou mediação didática. Em termos práticos, um professor da rede estadual, por exemplo, distante de um poderoso instrumento de reflexão crítica, deve operar como uma espécie de apresentador, ou repetidor, de conteúdos pré-estabelecidos pelo governo. Enfim, apenas um pequeno elemento, de uma gradual crise, que ilustra um pouco de como a educação brasileira está em direção oposta às advertências de Adorno, seguindo uma proposta que é praticamente um manifesto contra-educacional, no caminho aberto pela Ditadura Civil-Militar.[32]

De modo geral, o projeto educacional tornou-se um instrumento legitimador para o status-quo da sociedade brasileira, a sua finalidade é a segregação entre classes, entre estamentos sociais, entre ricos e pobres.[33] Para demonstrar a tese sobre sua finalidade, bastaria um olhar mais atento sobre os “sistemas de ensino”, variando a formação conforme condição econômica e passíveis de parcerias com empresas do setor privado, flexibilizando os currículos para manter diferenças econômicas e estruturais.[34] De maneira sucinta, um modelo para fomentar precarizados, contra representações democráticas, está em disputa e sendo imposto nas lógicas e heranças ditatoriais brasileiras, nas palavras de Toledo: “espelho da estratificação social de uma sociedade completamente desigual” (2017, p. 197).

As distorções econômicas no currículo, de acordo com o que foi exposto, estão relacionadas também com a constituição de identidades integrantes do mundo globalizado, no projeto de total diluição das diferenças. Uma das implicações desse ensino precarizado, com seus currículos controlados pela lógica econômica, é retirar dos alunos a possibilidade de ressignificar o presentismo em que vivemos, a perda da consciência política.[35] Em linhas gerais, para Bittencourt, a escola pode perder uma finalidade primordial, disponibilizar ensino, e se transformar em apenas um veículo de inserção de “indivíduos” na cultura da sociedade global, em outras palavras, se caracterizará como espécie de instrumento para formar ou deformar identidades conforme as pressas de um princípio técnico-capital, condizente com nossa temporalidade.

A maior advertência desse livro é que o propósito maior da educação é fazer com que Auschwitz não se repita,[36] e essa empreitada está diretamente ligada com outras complexas questões, como a definição de emancipação, a presença do autoritarismo, a consciência verdadeira, o trabalho e a alienação, a individualidade e a coletividade, a administração de uma sociedade, e, muito embora estamos longe de esgotar tais questões, apenas destacando alguns pontos aqui, enfatizamos a centralidade da questão professor e aluno. Na realidade brasileira, e não em abstrações, enfrentamos problemas práticos, como a proximidade entre sua finalidade e o capital, que nos direcionam para a barbárie. O intuito dessa resenha, para além de simples opinião, é também uma advertência à sociedade e, especialmente, aos professores e alunos: estamos caminhando para a crise…


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradução: Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 1985.

BITTENCOURT, Circe. Reflexões sobre o ensino de História. In Estudos Avançados. 32 (93), 2018.

CÉSAR, P. EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO: Reflexões a partir da filosofia de Theodor Adorno. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://www.theoria.com.br/edicao0109/Educacao_e_Amancipacao.pdf>. Acesso em: 5 mar. 2024.

SACRISTÁN, J. Gimeno. A educação obrigatória – seu sentido educativo e social. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.

TOLEDO, Maria Rita de Almeida. O Ensino Médio no Brasil: uma história de suas finalidades, modelos e a sua atual reforma. IN: MACHADO, André Roberto de A, TOLEDO, Maria Rita de Almeida. Golpes na História e na Escola – o Brasil e a América Latina nos séculos XX e XXI. São Paulo: Cortez: ANPUH SP. São Paulo, 2017.

TORRES, C. M. R. Educação e emancipação em Karl Marx e Theodor Adorno. Revista HISTEDBR On-line, v. 17, n. 4, p. 1266–1282, 21 dez. 2017.


[1] ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradução: Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 1985, p. 185.

[2] ADORNO, Op. Cit., p. 198.

[3] ADORNO, Op. Cit., p. 186.

[4] CÉSAR, P. EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO: Reflexões a partir da filosofia de Theodor Adorno. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://www.theoria.com.br/edicao0109/Educacao_e_Amancipacao.pdf>. Acesso em: 5 mar. 2024, P. 37-38.

[5] CÉSAR, Op. Cit., p. 39.

[6] ADORNO, Op. Cit., p. 187; p. 191.

[7] ADORNO, Op. Cit., p. 186.

[8] ADORNO, Op. Cit., p. 198.

[9] ADORNO, Op. Cit., p. 185.

[10] TORRES, C. M. R. Educação e emancipação em Karl Marx e Theodor Adorno. Revista HISTEDBR On-line, v. 17, n. 4, 21 dez. 2017, p. 1277.

[11] ADORNO, Op. Cit., p. 192.

[12] ADORNO, Op. Cit., p. 193-194.

[13] ADORNO, Op. Cit., p. 198.

[14] ADORNO, Op. Cit., p. 201.

[15] ADORNO, Op. Cit., p. 15.

[16] ADORNO, Op. Cit., p. 17.

[17] ADORNO, Op. Cit., p. 68.

[18] TORRES, Op. Cit. p. 1280.

[19] TORRES, Op. Cit. p. 1278-1279.

[20] ADORNO, Op. Cit., p. 167.

[21] ADORNO, Op. Cit., p. 156.

[22] ADORNO, Op. Cit., p. 163.

[23] CÉSAR, Op. Cit., p. 39-40.

[24] TORRES, Op. Cit., p. 1276.

[25]ADORNO, Op. Cit., p. 62-63.

[26] SACRISTÁN, J. Gimeno. A educação obrigatória – seu sentido educativo e social. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.

[27] ADORNO, Op. Cit., p. 85-86.

[28] CÉSAR, Op. Cit., p. 42.

[29] TORRES, Op. Cit., p. 1280.

[30] ADORNO, Op. Cit., p. 93.

[31] TOLEDO. O Ensino Médio no Brasil: uma história de suas finalidades, modelos e a sua atual reforma, p. 177-178.

[32] TOLEDO, Op. Cit., p. 187-188.

[33] TOLEDO, Op. Cit., p. 192.

[34] TOLEDO, Op. Cit., p. 193-195.

[35] BITTENCOURT, Circe. Reflexões sobre o ensino de História. In Estudos Avançados. 32 (93), 2018, p. 144.

[36] ADORNO, Op. Cit., p. 129.

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