The Snow Queen, lançado em 2014, é o nome do novo romance de Michael Cunningham, o premiado escritor de As Horas.

    O livro foi batizado com o nome do conhecido clássico homônimo de Hans Christian Andersen, mas não se trata de uma releitura moderna do mesmo. Embora existam muitos pontos que os conectem, é necessário estar atento para percebê-los. A referência ao famoso conto não foi sequer de fácil compreensão para o próprio editor e amigo de Michael Cunningham, motivo de discussões.

    Alguns elementos no livro são evidentes ao conto, como a presença dos flocos de neve e a atmosfera do mistério, do mágico à espreita. Mas gradualmente eles dão espaço a algo mais humano e menos sutil: a doença, os medos, a solidão e a cocaína, – verdadeira Snow Queen?– que é quase uma coadjuvante na segunda parte do livro.

    Um texto poético

    O texto é poético ao tratar dos sentimentos profundos da alma, mas não chega a ser denso, nem precisa. Cunningham explora a linguagem de maneira objetiva, sem a intenção de impressionar, sem usar adjetivos bonitos ou vistosos, o texto é direto e sem afetações. Os personagens foram trabalhados na medida exata, resultando em interações comoventes que nos absorvem imediatamente para trama. Mesmo depois que a leitura acaba, ou o livro acaba, os personagens ficam na cabeça, coexistindo, ecoando.

    Percebe­-se já logo nas primeiras linhas a forte influência de Virgínia Woolf. Afinal, todos aqueles anos – se não me engano 5 – de pesquisas para escrever As Horas, marcaram profundamente seu estilo e narrativa – para a nossa alegria.

    Os personagens centrais são os irmão Barret e Tyler e a esposa de Tyler, Beth, que está enfrentando um câncer já em estágio terminal. Outros personagens são apresentados durante o desenvolvimento da trama como Liz, sócia de Beth e outros.

    O livro inicia em 2004, com Barret avistando uma luz no céu, um fenômeno que ele interpreta como espiritual, como o olho de Deus voltado para sua existência mortal. Mas para quê mesmo? Ele se perguntará muitas vezes, pois embora não seja espiritual ele urge para que exista esse algo maior. Barret, nessa altura, sem dinheiro para pagar o aluguel, precisou morar com o irmão, mas o ponto estrutural dessa fase do livro é que ele está sofrendo por conta de uma separação abrupta: seu namorado o deixou, sem cerimônias, sem consideração, e passa a ignorá-­lo definitivamente.

    Tyler e Barret nutrem um pelo outro uma relação que quase beira o incesto em alguns momentos. Quase, porque essas revelações acontecem na mente deles apenas, como uma possibilidade de, nunca como um fato. Tyler está tentando compor uma música para Beth e urge para casar-­se com ela e compor essa música antes que ela morra. Porém, apesar do talento que julga ter, ele é incapaz de tornar a música real ou mesmo de ser reconhecido para além do bar em que trabalha.

    O registro de uma época

    Um ponto fundamental no livro é a forma como a nossa época é registrada. A forma como o Google e, principalmente, o Youtube são importantes para o desfecho da trama. Mas, e muito além disso, há um registro pontual: a presença de famílias fora do padrão pai­mãe­filhos e as relações consideradas atípicas para a sociedade: no evidente personagem gay (muito bem construído); no nem tão evidente personagem de comportamento hétero que assume para si que sente tesão por homem (mesmo que seja um, mesmo que seja naquela noite, naquela condição – Cunningham foi brilhante aqui também); ou ainda na personagem mais velha de Liz, senhora que gosta de homens bem mais novos (outro tabu) e não consegue uma relação duradoura com nenhum. Há ainda a crítica de cunho social e político que diz respeito à história estadunidense, que se passa no mesmo período do livro 2004 a 2008.

    Enfim, mais uma grande obra de Michale Cunningham. Daquelas que todas as pecinhas do quebra­cabeça se encaixam no final. Bem, quase todas. Algumas precisam ser encaixadas com elementos de dentro do leitor. E, ao contrário de Andersen, Cunnigham termina sua obra com os personagens seguindo seu caminho individualmente. Cada um por si. Extremamente lindo e mais uma vez bem reflexo desta época.

    Segue um trechinho do livro de Michael Cunningham:

    “He’s still producing approximations, and it vexes him that most people (not Beth, not Barrett, just everybody else) see him as a sad case, a middle­aged bar singer (no, make that middle­aged bartender, who’s permitted by the owner to sing on Friday and Saturday nights), when he knows (he knows) that he’s still nascent, no prodigy of course, but the music and poetry move slowly in him, great songs hover over his head, and there are moments, real moments, when he feels so certain he can reach them, he can almost literally pull them out of the air, and he tries, lord he tries, but what he grabs hold of is never quite it.”

    Curiosidade: Caio Fernando Abreu também estava a trabalhar num livro, que nunca leremos, infelizmente, chamado Malditas Fadas, uma releitura adulta dos contos de Hans Christian Andersen e dos Irmãos Grimm. O conto Os Sapatinhos Vermelhos (lançado originalmente em Os Dragões Não Conhecem o Paraíso), é uma referência também ao homônimo de Andersen, seria um dos contos a compor esse novo livro. A versão do Caio é maravilhosa também.

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    1 comentário

    1. Alexandre Nunes on

      O conto “onírico” do Caio , uma releitura adulta da pequena sereia, tb integraria o Malditas Fadas.

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