Flannery O’Connor escreveu um conto primoroso, de linguagem simples e elegante, e que deixa o leitor cheio de perguntas.

    Um senhor está na janela de um pequeno apartamento onde mora com a sua filha, a contragosto, pois ele queria mesmo é continuar morando numa pensão, para se sentir dono do próprio nariz. Mas a sua filha, num ato de amor ao pai, decide tirá-lo daquele lugar e enfim; num belo fim de tarde lá está o velho Dudley na janela à espera do gerânio, que o vizinho coloca todos os dias, no mesmo horário, na janela.

    O velho Dudley gosta de admirar o gerânio e o seu dia ganha realmente um significado especial por ser possível aquela visão diária. Ele se lembra dos tempos em que não era tão velho. Em que era um caçador, e tinha uma fazenda, e muito espaço para caçar, e o mais importante de tudo, um amigo. Mas ele não se dá conta de que as suas lembranças são tão doídas por conta de uma amizade que não mais existe. Para ele a memória é forte porque ele caçava.

    “Rabie conhecia o rio, para um lado e para o outro, por mais de trinta quilômetros. Não havia outro negro no condado de Coa que o conhecesse tão bem. Rabie adorava o rio, mas o velho Dudley, que não lhe dava especial importância, queria mais era saber dos peixes.” (p 11)

    E sua vida atual, de morar com a própria filha num apartamento minúsculo, na situação de que os dois não possuem assuntos em comum, traz a solidão a Dudley que, fica eufórico e ao mesmo tempo indignado quando vê um negro no apartamento ao lado.

    Durante a leitura do conto fica evidente o racismo em Dudley. A sua amizade no passado com um negro não colaborou para o fim do seu comportamento, que vai se revelando mais cruel a cada página, na proporção que o negro do apartamento ao lado vai surgindo na narrativa. Constantemente há comparações sobre o que uma pessoa de pele escura pode fazer ou não na sociedade. Se ela pode usar um sapato fino, comprar o apartamento ao lado e ajudar o próximo.

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    O que fica no conto é uma sensação de pena pelo o senhor Dudley, por sua cegueira em não conseguir ver além. O seu passado, a sua amizade com um negro, é invisível para ele, enquanto que para o leitor a solidez de uma amizade verdadeira fica totalmente visível.

    É um conto primoroso, de linguagem simples e elegante, e que deixa o leitor cheio de perguntas. As minhas são: como seria a vida do velho Dudley se ele não fosse racista? Quais diferenças estariam marcando este conto? Como ele se lembraria do passado se não sentisse indignação por ver um negro bem vestido e morando ao seu lado? O quanto a vida de uma pessoa pode ser diferente, sem ela nem dar conta, de acordo com a quantidade de preconceitos que ela possui?


    “O Gerânio” é o primeiro conto presente no livro “Flannery O’Connor – Contos Completos”, da editora CosacNaify

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